«Tudo começou em Cleveland. Eu estava num serviço para o The New York Times, a escrever uma história acerca do 50º aniversário de um torneio de basquetebol para negros. Tive de viajar para o Ohio e entrevistar um dos fundadores do torneio, um treinador reformado, de 88 anos, chamado John B. McLendon Jr. […] O primeiro técnico afro-americano a vencer um campeonato nacional universitário, também o primeiro negro a treinar equipas profissionais. Na verdade, havia tantos «primeiros» que, antes da nossa entrevista, o treinador McLendon tinha preparado um resumo em que elencava estes feitos. Quando ele me mostrou a lista, os meus olhos saltaram quando vi a segunda entrada. Dizia: 1944 – treinou a N.C. College vs Duke Navy Medical School num jogo de basquetebol privado, não anunciado e à porta fechada. Fiquei espantado. […] “Treinador, oiça,”, disse-lhe eu, “não quererá dizer 1954? Ou 1964?”. “Não”, respondeu. “Foi mesmo 1944. Deixe-me contar-lhe…”»

A NBA ainda treme com o escândalo que o dono dos LA Clippers provocou. Donald Sterling foi banido para a vida devido a comentários racistas. O basquetebol norte-americano viu-se, de repente, envolvido num problema antigo, que demora a ser ultrapassado, reflexo de um país onde o racismo é mal secular. Tanto assim é que um jogo de basquetebol realizado em Durham, Carolina do Norte, permaneceu secreto durante 52 anos até que Scott Ellsworth, um repórter do NY Times, o divulgou em 1996. 

Durham nos anos 1940


Em 1944, a América batia-se, longe, na II Guerra Mundial e as diferenças entre norte e sul, se hoje permanecem grandes, eram naquela altura maiores. O tratamento baseado na raça sempre dividiu o país e só dali a dez anos se deu o primeiro passo para que acabasse a segregação no sistema escolar; mais, apenas em 1956 o Supremo Tribunal dos EUA declarou pela primeira vez inconstitucional uma lei no Alabama que obrigava a separação de negros e brancos nos autocarros. Era já 1965 quando as leis segregacionistas [Leis Jim Crow] nos estados sulistas foram, por fim, abolidas. Por isso, fazer um jogo interracial de basquetebol numa qualquer localidade do Sul em 1944 não só era arriscado como era crime punido com prisão.

Durham, na Carolina do Norte, era uma dessas cidades. Mas foi lá que aconteceu aquele que ficou conhecido como o «The Secret Game», entre os Eagles da North Carolina College for Negroes e a equipa da Duke Navy Medical Shool. Realizou-se a 12 de março de 1944, num domingo de manhã, altura em que a maior parte da cidade, e da polícia, estava na missa. 

A equipa oficial [varsity] de Duke em 1944/45 não era considerada a melhor da Universidade


Naquele ano, com os EUA em envolvidos na II Grande Guerra, chegavam à cidade muitos militares. Hoje uma das potências do basquetebol universitário, em 1944 Duke acolhia os brancos que frequentavam os programas que o Exército e a Marinha tinham implementado naquela academia. A equipa oficial de basquetebol vencera o campeonato da conferência sul mas não era, ainda assim, a melhor da Universidade. Essa honra cabia a Dick Thistlethwaite, David Hubbell, Homer Sieber, Dick Symmonds e Jack Burgess, o cinco inicial da Duke Navy Medical School.

Ninguém sabe ao certo de quem partiu a ideia. Os próprios intervenientes desconhecem. É convicção que tenha surgido algures num pequeno contacto entre negros e brancos da YMCA, organização de jovens cristãos. A fama daquele cinco de Duke chegou ao outro lado da cidade de uma qualquer forma e houve logo quem contrapusesse que a melhor equipa de Durham estava na North Carolina College for Negroes.

Aubrey Stanley, Henry (Big Dog) Thomas, Floyd (Cootie) Brown, James (Boogie-Woogie) Hardy e Edward Boyd eram orientados nos Eagles por alguém que bebeu basquetebol do inventor do jogo. John McLendon foi aluno do Dr. James Naismith, na Universidade de Kansas, embora nunca tenha ele próprio podido jogar devido à segregação. Por isso, quando lhe falaram na possibilidade de defrontar Duke não hesitou. E decidiu que se devia jogar no pavilhão da sua equipa, com árbitros e um relógio/marcador.

A referência ao jogo neste documentário da ESPN     


O impulsionador do lado branco foi Jack Burgess. O base tinha jogado no Montana, um estado do Norte, daí que as leis Jim Crow lhe fizessem alguma confusão. Nos depoimentos que deu 52 anos depois, Burgess contou que uma vez foi corrido de um autocarro, ameaçado com uma faca, por ter questionado o sistema de lugares nos transportes públicos: os brancos sentavam-se à frente, os negros atrás.

Burgess gostou da ideia à primeira. Mais difícil foi convencer os colegas de equipa. Nesse mesmo ano, um militar negro fora assassinado por um motorista branco por não ter sido suficientemente rápido a dirigir-se para os lugares traseiros do autocarro.

Havia medo no ar, mas o fogo pela competição levou-os a arriscar. «Achávamos que os podíamos bater», disse David Hubbell, da Duke Medical School, ao NY Times.

O jogo foi marcado para um domingo de manhã. McLendon nem se atreveu a contar à direção da Universidade. Um jornalista do The Carolina Times, um semanário negro, descobriu a história, mas concordou em não escrever nada. Se a polícia soubesse, as consequências seriam sérias para os envolvidos, sobretudo para os negros. O tal motorista branco, por exemplo, foi ilibado da morte do militar.

Do outro lado da cidade, a equipa de Duke meteu-se em carros emprestados. «Para evitar sermos seguidos, percorremos um caminho sinuoso pela cidade», recordou Hubbel. Quando chegaram perto do ginásio, puxaram os casacos para cima, até lhes cobrirem a cara e o cabelo. McLendon trancou as portas do pavilhão logo de seguida. O jogo foi mesmo à porta fechada e fechado esteve até 1996.

O perfil de John B. McLendon no Hall of Fame do basquetebol

«Eu nunca tinha jogado basquetebol contra uma pessoa branca e estava um pouco a tremer. Não se sabia o que podia acontecer se houvesse uma falta dura, ou uma briga. Tentei sempre olhar para o Big Dog Thomas e para o Boogie Hardy para perceber o que fazer. Eles eram os dois do Norte do país», lembrou Aubrey Stanley, dos Eagles.

O início do jogo teve muitos erros, vários turnovers, sublinharam os jogadores ao NY Times. Stanley era o mais novo em campo e tinha crescido debaixo de todas as leis de segregação. «A meio do primeiro tempo pensei: “Podemos bater estes tipos. Não são super-homens. São homens como nós.”» Na segunda parte, os Eagles fizeram jus à reputação que tinham: um ataque baseado num ritmo alto, demasiado rápido para a melhor equipa de Duke, que perdeu 88-44.

Entretanto, começara a correr pelo Campus que «algo se estava a passar» no ginásio. Alguns curiosos conseguiram trepar a uma janela. Viram algo ainda mais incrível: havia agora um segundo jogo, com equipas mistas. O bom ambiente continuou e os jogadores dos dois lados reuniram-se de seguida num dos dormitórios, para uma conversa, antes dos atletas de Duke regressarem a casa.

A polícia nunca soube do que se passara. Nem os jornais da cidade. O repórter do The Carolina Times cumpriu com a palavra. Até que em em 1996, John McLendon entregou uma lista a um jornalista.

«Quando regressei a casa nessa noite, sabia que tinha tropeçado num pedaço perdido da história da América. O que não sabia era se o podia trazer à luz do dia. Como muitas outras cidades sulistas nos anos 40, Durham era segregada. Por lei, os negros e os brancos viviam em bairros separados, frequentavam escolas separadas [e desiguais] e eram sepultados em cemitérios diferentes. Os governantes da cidade eram todos brancos. Assim como a polícia. […] Devido a esse ambiente, a ideia de brancos e negros a jogar basquetebol juntos não era apenas provável, era perigosa. Mas pelo modo como McLendon me relatou o jogo (…) não tinha dúvidas de que ele tinha existido. Também sabia que para o perceber, tinha de encontrar um dos jogadores de Duke. […]»

«Cruzei os nomes dos marcadores com os dos estudantes de medicina durante a II Guerra. Depois vi os números de telefone no diretório dos alunos e comecei a fazer algumas chamadas. À quarta, consegui chegar a David Hubbel, um cirurgião torácico que vivia em São Petersburgo, na Florida. “Parece que na primavera de 1944”, disse-lhe ao telefone, “aconteceu um jogo um pouco estranho de basquetebol entre alunos de Duke e a equipa da North Carolina College for Negroes. Por acaso, você não esteve nesse jogo, esteve?” Pareceu que passou um minuto antes de Hubell responder: “Sabe de uma coisa”, retorquiu, “estive sim.”»