Um futebol onde não teria lugar NGolo Kanté no ano em que levou o Leicester ao título inglês, ou Dimitry Payet, ou Anthony Martial, ou alguns dos jogadores portugueses que vemos atualmente nos relvados britânicos. Um futebol mais fechado ao exterior, que verá as estrelas a contratar sair provavelmente muito mais caras aos seus clubes. Também adeptos que verão as viagens para acompanhar as suas equipas ganhar complicações burocráticas adicionais. São alguns dos cenários que o adeus do Reino Unido à União Europeia tornou plausíveis. Quais serão exatamente as consequências começa a decidir-se a partir daqui, agora que começou formalmente a contagem descrescente para o divórcio.

O governo inglês acionou nesta quarta-feira o artigo 50 do Tratado de Lisboa, desencadeando o processo que a história recordará como Brexit. Com muito mais perguntas do que respostas, para já, mas a certeza de que vai ter enorme impacto na vida de muitos milhões de pessoas, que não apenas os cidadãos britânicos. E que as ondas de choque se estenderão ao desporto.

A primeira grande questão, no que diz respeito ao futebol, é a circulação de pessoas. O futebol inglês recebe nesta altura de forma muito diferente jogadores cidadãos da UE e os restantes estrangeiros. Se os primeiros podem trabalhar no Reino Unido sem restrições, os outros têm de cumprir uma série de requisitos, incluindo determinado número de internacionalizações, dependendo do «ranking» da respetiva seleção.

Há muitos jogadores de países da UE na Premier League e a maior parte deles não cumpriria esses requisitos para obter uma licença de trabalho. Como o francês Ngolo Kanté, central na conquista do título pelo Leicester na época passada e hoje no Chelsea, um exemplo entre muitos outros jogadores europeus que quando chegaram ao futebol britânico não tinham a regularidade requerida nas suas seleções. Aliás, a Premier League e todos os seus clubes manifestaram-se formalmente contra o Brexit, nos dias que antecederam o referendo.

Um levantamento feito pela BBC na altura do referendo ao Brexit, em junho do ano passado, estimava que, perante uma saída, nada menos que 332 jogadores oriundos da UE a jogar nessa altura nas principais divisões britânicas falhariam nos critérios, e portanto não poderiam jogar no futebol inglês. O estudo tinha por base os plantéis da época anterior e dizia que 100 desses jogadores seriam da Premier League, estando 180 no Championship. E desses que atuavam no segundo escalão apenas 23 cumpririam os critérios para ter licença de trabalho, sendo que na sua maioria seriam jogadores da Irlanda ou de países da Commonwealth, que têm passaportes britânicos.

O que há para já são cenários, entre as versões mais «soft» ou mais «hard» do Brexit. De um cenário em que aos cidadão da UE atualmente residentes no Reino Unido ficariam na mesma situação do que os britânicos a outro em que passariam a ser equiparados a qualquer outro estrangeiro de fora da Europa.

O Governo britânico foi dando sinais diversos sobre o assunto desde o sim ao referendo que aprovou a saída da UE. E se se mostrou sempre mais aberto a soluções de continuidade em relação aos cidadãos europeus já residentes no Reino Unido, também deixou claro que as regras serão mais apertadas para os que chegarem de novo.

Na formalização do arranque do processo, nesta quarta-feira, Theresa May quis deixar claro que a questão dos cidadãos europeus é uma das prioridades. «Irei representar cada pessoa em todo o Reino Unido», disse Theresa May, «e também os cidadãos da UE que fizeram deste país a sua casa». E também adiou uma definição sobre o assunto, ao dizer que toda a legislação que o governo britânico se propõe criar só entrará em vigor quando estiver concluído todo o processo de saída, que tem um prazo estimado de dois anos.

Se os políticos têm evitado respostas concretas a todas as perguntas e o único dado seguro é que vem aí um longo e muitíssimo complexo processo de negociações a vários níveis para o Reino Unido, a União Europeia e os diversos países que a integram, os adeptos do futebol virtual já terão uma noção mais concreta das consequências. A edição 2017 do jogo Football Manager já previu vários cenários para o Brexit, alertando os treinadores de consola para as potenciais consequências de contratar determinado jogador.

Fizeram-no estabelecendo três diferentes níveis de abordagem aos jogadores estrangeiros. Uma versão para o Brexit «soft», em que se mantém a livre circulação, outra em que os jogadores terão um estatuto misto, equiparado ao de «artista», que no Reino Unido tem isenções especiais, nomeadamente de impostos, e mais facilidade em obter vistos de trabalho. E uma versão «Hard», em que os cidadãos da UE passam a ter de reger-se pelas regras que se aplicam aos restantes estrangeiros.

«O facto de ir acontecer nos próximos anos tinha de estar no jogo», explicou à BBC o responsável pelo FM no Reino Unido, Miles Jacobson, explicando os cenários que introduziu: «Sentei-me no sofá durante dois dias a ler tudo o que pude, tanto a favor como contra o Brexit.»

Mais do que fizeram muitos políticos britânicos, como ironizou o deputado trabalhista Tom Watson, ministro-sombra da Juventude e Desporto, que questionou o Governo conservador sobre várias questões práticas das consequências do Brexit no desporto e recebeu apenas respostas vagas. «Algumas pessoas desdenham os jogos de computador, mas a indústria dos jogos está a pensar mais sobre o Brexit do que os ministros», afirmou Watson ao Huffington Post.

A questão dos jogadores não se limita aos profissionais. Também o filão dos adolescentes que chegam em grande número ao futebol inglês todos os anos corre o risco de secar. Nesta altura, os clubes britânicos podem contratar menores de 18 anos da União Europeia sem restrições, ao contrário do que acontece com outros estrangeiros.

O caso Aurier e o aviso da UEFA

E há uma série de complicações adicionais. O caso de Serge Aurier, em outubro de 2016, foi visto como um exemplo dos riscos que coloca um endurecimento da abordagem do Reino Unido aos estrangeiros. O jogador marfinenses do PSG foi impedido de entrar em Inglaterra na véspera do jogo com o Arsenal para a Liga dos Campeões, porque tinha um caso pendente em tribunal, relacionado com uma acusação de agressão a um polícia numa discoteca. Numa decisão sem precedentes nestes casos, os serviços britânicos invocaram normas aplicavéis a cidadãos estrangeiros, no que foi visto como um endurecimento de posição já no espírito do Brexit.

Seguiram-se protestos formais, nomeadamente da UEFA, que assumiu grande preocupação com eventuais consequências do Brexit neste campo. Há um mês, numa entrevista ao «New York Times», o presidente da UEFA deu mesmo exemplos como os de Messi e Neymar, que têm processos em tribunal em Espanha relacionados com o Fisco. Disse que, se jogadores como eles corressem o risco de entrar no Reino Unido, será todo o futebol britânico como cenário de jogos europeus que fica em causa. «Se virmos que há jogadores que não podem entrar porque têm algum processo judicial, teremos de considerar se devemos jogar as competições europeias lá. Este ano a final da Liga dos Campeões é em Cardiff, imaginem se não os deixassem entrar», afirmou Aleksander Ceferin: «Para nós será um problema que os jogadores de Inglaterra possam ir a todo o lado e os de outras equipas não possam entrar no Reino Unido.»

Por fim, como cenário transversal a todo o Brexit, há a questão financeira e comercial, mais uma vez também no desporto. A libra tem vindo a perder valor face ao euro, desde o sim no referendo do Brexit, pelo que os clubes ingleses correm o risco de perder poder de compra e peso no futebol internacional. Na mesma medida, o campeonato inglês pode tornar-se menos atrativo para trabalhar. Foram abundantes as estimativas dos muitos milhões que perderão treinadores de topo como José Mourinho ou Pep Guardiola com a desvalorização da libra.

E isto sem incluir ainda nestas contas a Escócia, onde os deputados votaram a favor de nova proposta de um referendo sobre a sua independência do Reino Unido. Em 2014 o «não» ganhou por pouco, mas o Brexit deu novo fôlego aos que querem a separação.