A FIFA enviou esta semana para as entidades competentes um draft com as regras que vai implementar a partir de novembro de 2022 para regular a atividade dos agentes de futebol. Já é o terceiro documento que a FIFA elabora, após os dois primeiros terem dado polémica. O problema é que este não trouxe mais consenso que os anteriores.

Os empresários admitem que a atividade tem de ser regulada, mas não desta forma: queixam-se que as medidas são exageradas e que chocam até com os princípios básicos como a livre circulação na União Europeia.

«A FIFA já tinha feito dois drafts anteriores, agora consultou algumas organizações e formalizou este draft para fechar o assunto. O problema é que este draft é pior do que o anterior. Já entraram processos nos tribunais da Alemanha, da Suíça e no Tribunal Europeu. Em breve vai entrar também nos tribunais em Portugal», revela Artur Fernandes, presidente da Associação Nacional de Agentes de Futebol e, ele próprio, agente da Stellar Group.

«Falam de contactos com associações de agentes, mas não falaram com ninguém de relevo. Por exemplo, na The Football Forum, que é a maior associação de agentes do futebol, na qual estamos nós, Jorge Mendes, Mino Raiola, Jonathan Barnett, Roger Wittmann, entre outros, ninguém foi consultado. A FIFA legisla sem consultar e o governo vai ter de por mão nisto.»

Refira-se que a FIFA, logo na abertura do draft a que o Maisfutebol teve acesso, defende que é necessário, entre outras coisas, «elevar e fixar padrões profissionais e éticos mínimos para a ocupação de agente de futebol», para além de «melhorar a transparência financeira e administrativa, proteger os jogadores e aumentar a estabilidade contratual».

Os agentes concordam, mas dizem que ficou claro que não pode ser a FIFA a regulamentar.

«Não estando os agentes representados nas assembleias gerais da FIFA, da UEFA e das federações nacionais, o que nós agentes vamos fazer, em sintonia com as federações e sobretudo com os governos, é criar uma legislação nacional, uma ordem própria e sair da alçada da FIFA. Os advogados, os engenheiros, os médicos têm a sua ordem e nós também vamos ter», adianta Artur Fernandes.

«Ainda que lhe fique bem a regulação em termos gerais, a FIFA não regulou sobre os direitos televisivos. Porquê? Porque as empresas que trabalham os direitos televisivos não fazem parte das assembleias da FIFA. Se os agentes também não fazem parte, ao contrário dos médicos, dos enfermeiros, dos treinadores ou dos árbitros, se os agentes funcionam portanto em outsorcing, então terão de se autorregular.»

O empresário da Stellar Group diz, de resto, que há gente muito importante a mexer-se e por isso que é a FIFA tem atrasado sucessivamente a entrada em vigor deste plano. Já o quis para novembro de 2021, depois passou para junho de 2022 e agora diz que as federações o devem «implementar até 30 de novembro de 2022».

Mas afinal de que artigos regulamentares estamos a falar?

Vários. O documento é extenso, aliás. Os agentes são obrigados a cumprir várias formalidades e manter uma ficha limpa como agentes do desporto e como cidadãos. Mas o que mais polémica está a criar é a limitação percentual do valor que um agente pode ganhar com uma intermediação: dez por cento do negócio se representar o clube vendedor, três por cento do contrato do jogador se representar o clube comprador ou o atleta (sim, é verdade, os agentes deixam de receber uma comissão indexada ao valor da transferência se representarem o atleta ou o clube comprador).

Vamos por partes, portanto.

1. Quem pode ser empresário?

Antes de mais, a intermediação deixa de estar aberta a qualquer pessoa. Para fazer um negócio, é preciso ser agente de futebol com uma licença. Ou seja, só com uma licença se pode realizar serviços de agenciamento ou intermediação. O que significa que familiares e advogados, por exemplo, deixam de poder representar jogadores. A não ser que sejam agentes de futebol licenciados.

Para obter a licença, o agente deve passar num teste criado pela FIFA, deve apresentar seguro de responsabilidade profissional e deve pagar anualmente uma taxa.

No entanto, e para a inscrição ser aceite, o agente deve «nunca ter sido condenado a pelo menos 12 meses de prisão», nem tão pouco «ter sido objeto de exclusão ou suspensão de pelo menos dois anos por qualquer autoridade desportiva».

Para além disso, nos cinco anos anteriores a pessoa, ou uma empresa da qual ela seja responsável, não pode ter declarado falência. O agente também não pode ser funcionário da FIFA, de uma confederação, de uma federação, de uma liga, de um clube ou de um sindicato de jogadores, nem pode ter qualquer interesse num clube, academia ou casa de apostas.

A licença é concedida por tempo indeterminado, mas exige o cumprimento todos os anos de um plano de desenvolvimento profissional.

Um empresário pode conduzir os negócios através de uma agência, mas os funcionários contratados para essa agência não podem realizar serviços de agenciamento ou intermediação se não tiverem também a licença de agente de futebol.

2. Obrigações do empresário

O agente só pode realizar serviços de agenciamento aos jogadores com quem tenha um contrato de representação: se não for o representante oficial não pode abordar o atleta.

Os contratos de representação são válidos por um máximo de três anos e não podem ter cláusulas de renovação automática: a renovação implica um novo contrato.

Um agente só pode representar num mesmo negócio o jogador, o clube comprador ou o clube vendedor, embora mediante autorização das partes possa representar jogador e clube comprador. Em caso algum pode representar jogador e clube vendedor, nem os dois clubes.

Também não pode representar um clube vendedor numa negociação de um jogador que o empresário tenha agenciado nos dois mercados de transferências anteriores.

Os empresários não podem incluir nos contratos de representação cláusulas que penalizem o atleta por negociar uma transferência ou um contrato sem o apoio do agente.

Os empresários são obrigados a introduzir na plataforma digital da FIFA todas as informações relativas a celebração, renovação ou rescisão de contratos de representação, bem como todas as informações de transferências e comissões acordadas com os clientes.

Um agente só pode abordar e assinar contrato de representação com um menor seis meses antes do menor atingir a idade mínima para assinar contratos profissionais (o que varia entre federações). A violação deste artigo pressupõe uma suspensão da licença durante dois anos.

3. Remuneração do agente de futebol

Antes de mais é preciso dizer que está a ser criada a FIFA Clearing House: uma câmara por onde terá de passar o dinheiro de todas as transferências, até para a própria FIFA distribuir o mecanismo de solidariedade pelos vários clubes. Ora a partir do momento em que a FIFA Clearing House estiver criada, nenhuma comissão deve ser paga pelo cliente (seja ele atleta ou clube) diretamente ao agente de futebol, tendo o pagamento de ser feito através da referida Clearing House.

No entanto, a medida mais polémica prende-se com o valor das comissões. De acordo com a FIFA, as comissões pagas pelas três partes ao agente têm os seguintes limites máximos:

- O jogador não pode pagar ao seu representante mais de três por cento do valor do seu contrato.

- O clube comprador não pode pagar ao seu representante mais de três por cento do valor do contrato feito com o jogador.

- O clube vendedor não pode pagar ao seu representante mais de dez por cento do valor da transferência.

- No caso de transferências a custo zero, o clube vendedor não pode pagar ao seu representante mais de dez por cento do último contrato do jogador antes de deixar o clube.

Ora desta forma a FIFA estabelece que um empresário não pode receber mais de dez por cento do valor da transferência no caso de representar o clube vendedor, nem mais de seis por cento do valor do contrato do jogador no caso de representar o atleta e o clube comprador. Se só representar uma destas últimas duas partes, então não pode receber mais de três por cento do valor do contrato.

Refira-se também que a FIFA proíbe os empresários de receber comissões da parte dos jogadores ou do clube comprador indexadas ao valor da transferência, da mesma forma que proíbe o clube vendedor de pagar comissões indexadas ao contrato do jogador com o novo clube.

4. Castigos

A FIFA estabelece que se um empresário falhar com alguma das suas obrigações referidas anteriormente, ou falhar com os requisitos para obter a licença de agente, fica automaticamente suspenso e será encaminhado para o Comité Disciplinar, que lhe concederá dois meses para retificar o erro, ou então no final desses dois meses a licença será definitivamente cancelada.

5. Transparência da atividade

A FIFA disponibilizará os nomes e detalhes de todos os Agentes de Futebol, os clientes que representam e o prazo de validade do contrato de representação, os serviços fornecidos a cada cliente, as sanções impostas a agentes e os detalhes de todas as transações envolvendo agentes de futebol, incluindo os valores das comissões pagas.

6. Exceções

A FIFA prevê uma exceção neste sistema de licenciamento para agentes de futebol, a qual permite a uma pessoa realizar serviços equivalentes a agenciamento de jogadores ou clubes num único país ou território. A pessoa deve cumprir os requisitos morais e éticos previstos para um agente de futebol e a federação do país em causa deve apresentar uma solicitação à FIFA para essa pessoa realizar determinados serviços, a qual será alvo de análise.

Artur Fernandes diz que se calhar os grandes agentes até seriam o que menos têm a perder com o plano, mas que estão contra ele por ser um atentado à atividade do agenciamento e da representação no mundo das transferências.

«O que revolta é o não diálogo e o desconhecimento da atividade dos agentes. Os departamentos da FIFA que trataram deste draft foram o departamento que se preocupa com o tráfico de menores e o departamento que se preocupa com a corrupção no futebol. Ou seja, desde o princípio eles já nos veem como um mal necessário», conta.

«As federações nacionais, os sindicatos dos jogadores e as associações nacionais de treinadores deviam estar também muito preocupadas. Em pouco tempo a FIFA vai impor tetos sobre tudo. Querem até limitar o nosso acesso à imprensa. O documento é limitador em termos de liberdade de expressão, em termos de competitividade comercial e em termos de crescimento da relação agente-jogador. É devastador e os agentes não o vão aceitar. Na devia altura a FIFA vai perceber que errou. Este documento viola todos os princípios de mercado.»

O agente dá, de resto, um exemplo. Um jogador de um clube pequeno da Liga recebe, em média, um vencimento de 60 mil euros anuais. O que significa que empresário que faça a transferência desse atleta vai receber 1 800 euros brutos por ano de comissão. Segundo ele, e numa atividade com tantos custos em deslocações, comunicações ou serviços jurídicos, o que um agente faz com uma transferência não lhe permite sobreviver sequer um mês.

A guerra pela regulação da atividade, portanto, ainda está longe do fim.

(artigo originalmente publicado às 23h55 de 16-12-2021)