O treinador da equipa da casa passou quase toda a primeira parte a apelar à agressividade dos jogadores. Os avisos (pelo menos cinco) do árbitro assistente número 1 não surtiram efeito e acabou por ser expulso do banco. 

A meio da segunda parte, e com o resultado em 2-1 para os visitantes, o mesmo assistente anulou um golo por fora-de-jogo tirado à equipa da casa. Logo a seguir sentiu um empurrão violento. Era o treinador expulso. «Apertou-me o pescoço e tentou dar-me um soco. Primeiro a mim e depois a um dos meus colegas», conta o juiz à MFTOTAL.

O episódio, que aconteceu há pouco mais de um ano num jogo da I Divisão Distrital de Évora, só não assumiu proporções maiores graças à ação dos jogadores da equipa visitada, que acalmaram os espetadores que saltaram da bancada «incendiada» para o campo, num momento de tensão que durou cerca de 15 minutos.

«Sou árbitro há cinco anos e já passei por momentos complicados. Todos os anos saímos dos jogos com polícia e escoltados até casa três ou quatro vezes, mas nunca tinha vivido uma situação assim», recorda o assistente, que ainda foi transportado para o hospital com hematomas na cabeça e no pescoço. O agressor acabou suspenso por nove meses e ainda não retomou a atividade de treinador.

«Senti um empurrão violento.
Era o treinador expulso.
Apertou-me o pescoço
e tentou dar-me um soco»


Há uma semana que o setor da arbitragem está a ferro e fogo devido a um pré-aviso de greve dos árbitros da 1.ª categoria para as últimas cinco jornadas da Liga. O campeonato pode assim parar a partir da ronda em que Benfica e FC Porto têm encontro marcado no Estádio da Luz, um duelo que pode deixar o título de campeão nacional praticamente entregue. Na origem desta decisão estão pagamentos referentes a direitos de imagem e a publicidade nas camisolas que, alegam os árbitros, a Liga de Clubes não executou. Este não é, porém, o maior problema que afecta por estes dias o setor.


Aumento das agressões e prevenção

Os casos de violência contra árbitros de futebol têm vindo a aumentar nos últimos anos. Na época passada registaram-se 210 episódios de agressão, mais 30 por cento do que no mesmo período do ano anterior.

José Fontelas Gomes, presidente da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF), aponta o dedo à alteração de 2012 ao decreto-lei sobre o regime de policiamento dos espetáculos desportivos, que introduziu caráter facultativo ao policiamento dos jogos nas competições amadoras.

«O diploma anterior não obrigava ao policiamento, mas todas as associações obrigavam. Com o esclarecimento que surgiu com a alteração da lei, passou a haver um lavar de mãos de associações e dos próprios clubes nessa matéria», explica o responsável à
MFTOTAL. E acrescenta: «Efetivamente, as pessoas pensam que podem fazer aquilo que querem. Também há agressões em jogos onde existe policiamento, não dizemos o contrário, mas o agente é um factor dissuasor da violência.»


             


A maior parte das agressões a árbitros ocorre no futebol jovem onde, diz a lei, « não deve
ter lugar o policiamento nos espetáculos referentes a competições de escalões juvenis e inferiores». Em março, um jogo de iniciados entre o Sacavenense B e o Bragadense foi suspenso na segunda parte por agressão do treinador da segunda equipa a um dos árbitros da partida após ter recebido ordem de expulsão por comportamento incorreto.

Segundo a APAF, na época passada registaram-se 210 agressões a árbitros. Nesta época, o número já ronda os 80, a maioria no Norte do país, onde há mais clubes. No distrito de Viseu, uma greve de árbitros, em protesto contra a falta de condições de segurança, levou à suspensão dos campeonatos durante um fim de semana de fevereiro.

«Houve um aumento grande de situações de violência. A ausência de forças de segurança pública cria uma sensação grande de impunidade. Dá-se um dedo e já se quer o braço», refere Bruno Pereira, do Núcleo de Árbitros de Viseu.

            

 
Como medida de prevenção, a direção da Associação de Futebol deste distrito formou recentemente uma comissão de avaliação para definir quais os jogos em que o policiamento passará a ser obrigatório. Uma decisão tomada após a ponderação de factores como a proximidade geográfica, a importância do jogo em termos classificativos, o histórico de incidentes em partidas dos/entre clubes e as condições do recinto desportivo.
 
São várias as associações que já avançaram para a criação de comissões de avaliação de jogos, que decidem, mediante atribuição de um de três graus de risco – baixo, normal e elevado - quais os encontros que devem ser sujeitos à presença de forças da autoridade (PSP/GNR, no caso de risco elevado), de elementos de empresas de segurança contratadas (risco normal) ou de pessoal dos clubes (risco baixo).


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O abandono precoce, a falta de árbitros e a intolerância


Em Portugal, o universo de árbitros ronda os 3950, números muito aquém do que seria necessário para cobrir todas as competições de futebol e futsal.

«Não está a reduzir, mas também não está a aumentar e devíamos estar nos 5 000», diz José Fontelas Gomes, que aponta a elevada taxa de abandono, situada entre os 50 e os 60 por cento logo nos primeiros meses de ofício, como uma das grandes causas para a falta de árbitros. E explica:

«Estamos a falar de casos de rapazes que em muitos casos têm entre 14 e 18 anos e, por isso, os pais têm uma palavra a dizer sobre a vida deles. E nenhum pai gosta que o filho seja insultado e muito menos agredido. Esse é o principal abandono que temos.» «Quando tirei o curso, no total éramos 18 formandos e agora só restam cinco», diz um árbitro à MFTOTAL
.
 
Para colmatar carências, muitos árbitros chegam a fazer seis jogos por fim de semana, três por dia. «Isso leva ao cansaço e nessas situações os árbitros cometem mais erros. Mas adeptos, dirigentes, jogadores e treinadores não têm isso em conta e há situações de grande intolerância», acrescenta o presidente da APAF.

À MFTOTAL
, um árbitro agredido no ano passado conta que teve de fazer um jogo um dia após ter sido agredido. «Fui ao hospital levar soro, tive alta às 3 da manhã e depois ainda fui apresentar queixa. No dia a seguir ainda fui para Lisboa fazer um jogo de juvenis. Faltar? Estava fora de questão. Era um compromisso», refere o árbitro, do Alentejo.
 
«80 por cento dos árbitros que conheço já foram agredidos»

 
André Martins foi vítima da ira de um jogador numa partida da II Distrital do Algarve há três anos. Quando soube que ia ser admoestado com o segundo cartão amarelo e consequente vermelho, o atleta pertencente à equipa visitante partiu para a violência: «Nem penses que me vais expulsar», disse momentos antes de lhe aplicar um murro. O jogador acabou suspenso por sete meses e já voltou a cruzar-se dentro das quatro linhas com André Martins. «Nunca mais me disse nada e nem me pediu desculpa. Age como se nada tivesse acontecido», conta.

 
André Martins foi agredido à cabeçada por um jogador que acabou suspenso por sete meses


David Veríssimo, árbitro há 16 anos, soma uma mão cheia de episódios de violência. «Não há jogo em que não sejamos insultados. E posso dizer que 80 por cento dos árbitros que eu conheço já foram agredidos de uma forma ou de outra. Como? Pontapés, cabeçadas, empurrões, através de arremessos de objetos ou cuspidelas. Já me passou várias vezes pela cabeça deixar a arbitragem. Tem-se notado uma insegurança muito superior», confessa.
 
Alguns casos de agressão dão-se em torneios não oficiais, geralmente abertos a jogadores não federados e onde muitas vezes não estão presentes forças da autoridade, como aconteceu a Luís Ribeiro há três anos.

«Adverti o jogador e ele começou a elevar o tom de voz, a dizer-me que não era capaz de lhe dar o outro amarelo e que, se mostrasse, estava feito.» O jogador, não federado, cumpriu as ameaças ao pontapé após ser expulso na sequência de outra falta dura. O jogo terminou de imediato, bem como a calendarização diária do torneio.

«O problema é que, não sendo jogadores federados, não têm nada a perder em termos desportivos. Desde essa altura que não faço torneios sem equipas federadas», conta o juiz.
 
Punições não são geralmente exemplares, diz presidente da APAF

 
A maior parte dos árbitros passa por um período de reflexão após ser vítima de situações de violência. Muitos ponderam abandonar a arbitragem, mas poucos o fazem por isso, principalmente quando já estão no ativo há vários anos.
 
«Já pensei em deixar, mas não por essas razões», diz Luís Costa, árbitro há 11 anos. Ele é dos 50 a 60 por cento de árbitros no ativo que, estima a APAF, já tenham passado por episódios de violência.

«Oitenta por cento dos árbitros que conheço
já foram agredidos de uma forma ou de
outra», David Veríssimo, árbitro


Um deles aconteceu há três anos, com um jogador de um clube algarvio que resolveu criticar quase todas as decisões tomadas pelo árbitro.

«No final da primeira parte assinalei uma falta normalíssima e ele protestou. A seguir, virou-se para um agente da GNR que era amigo dele e disse-lhes: 'Vai-te lá embora que nós tratamos destes passarinhos'», recorda o árbitro, que logo a seguir tirou o cartão amarelo do bolso, altura em que o jogador partiu para o insulto, com ameaças de morte ao juiz e à família dele pelo meio.

«Disse-me tudo o que você possa imaginar. Obviamente que já nem mostrei o amarelo, mas sim o vermelho. Aí, ele veio direito a mim e deu-me uma peitada, um pontapé, puxou-me a camisola e ainda me tentou dar dois socos na cara», conta Luís Costa, que teve de parar o jogo para receber assistência a um tornozelo que diz nunca mais ter ficado a 100 por cento.


Luís Costa foi ameaçado de morte por um jogador


Apesar do episódio, Luís Costa ainda foi árbitro assistente no mesmo dia num jogo da equipa de juniores da equipa do agressor, que não foi detido mas acabou suspenso por dez meses. O caso seguiu ainda para tribunal, onde o atleta foi condenado a pagar ao Estado uma indemnização superior a 1.300 euros.
 
«Se as punições são geralmente exemplares? Não considero que sejam, porque não têm diminuído. Se tenho um exemplo de alguém que cometeu um crime e que faz com que outra pessoa pense duas vezes antes de fazer o mesmo, pode dizer-se que aí há um exemplo. Mas, se o tipo de incidentes aumenta, isso significa que o que se está a aplicar não é suficiente. Sete meses, por exemplo, é pouco quando quem está à volta faz o mesmo», diz José Fontelas Gomes.


Campanha «Respect», da Federação inglesa de futebol. O PNED vai implementar uma iniciativa idêntica


Na penúltima semana de fevereiro, a APAF e o Plano Nacional de Ética no Desporto (iniciativa do Governo sediada no Instituto Português do Desporto e Juventude) lançaram a campanha «Respeito - Joga com FairPlay», no âmbito de uma ação de sensibilização contra a violência sobre as equipas de arbitragem. Os árbitros da 1.ª, 2.ª ligas e das competições distritais entraram em campo envergando camisolas com a palavra «respeito». «Já fizemos centenas de formações. Este ano vamos lançar uma campanha com a CAJAP [Confederação de Árbitros e Juízes de Portugal], que vem associada à campanha «Respect» inglesa e que visa promover a figura do árbitro», explica o cordenador do PNED, José Lima.


Também no sentido de mudar a forma como os juízes são vistos, foi lançada a iniciativa do cartão branco, um projeto-piloto que está a ser aplicado nos escalões de benjamins e infantis da Associação de Futebol de Setúbal. «A ideia é que o árbitro seja reconhecido como alguém que premeia e não apenas como alguém que sanciona. Queremos que ele seja visto como um elemento promotor do fair play», esclarece José Lima.

No final de janeiro,
Olegário Benquerença chamou a atenção para os problemas de segurança vividos pelos árbitros, principalmente nos escalões inferiores. «O problema é residual nas competições profissionais, mas nas regionais é semanal. Todas as semanas há árbitros agredidos em Portugal. E, muitas vezes, são agredidos não pela sua prestação mas por cabeças inflamadas que descarregam naquele desgraçado que está ali sem condições e sem proteção», disse durante a cerimónia de entrega de insígnias FIFA a árbitros portugueses. E acrescentou: «Urge tomar medidas ainda mais severas e dissuasoras destes comportamentos, sob pena de virmos a assistir num futuro próximo a alguma tragédia irreparável.»

 
Em 1998, um árbitro assistente foi atingido na cabeça com um tijolo após um jogo entre o Aliados de Lordelo e o Sousense. Esteve vários dias em coma e o incidente deixou-lhe graves marcas. Mais de dez anos depois, o Tribunal de Paredes condenou o Aliados de Lordelo ao pagamento de uma indemnização de cerca de 40 mil euros à família do árbitro então falecido. O agressor nunca foi identificado.
 
«Espero que não seja necessário acontecer novamente uma fatalidade para alertar consciências», aponta o presidente da APAF.