A crescente vaga de refugiados que tem chegado à Europa e já é a maior desde a II Guerra Mundial tem proporcionado muitas histórias paralelas. Exemplos de superação ou de adaptação a uma realidade que entrou de rompante e sem pedir licença.

Ainda recentemente o Maisfutebol deu conta do dia a dia anormal do Kalloni FC, clube da ilha de Lesbos, na Grécia, onde joga o luso-brasileiro Vítor Saba, e que teve de se adaptar a um dia a dia diferente.

Afinal de contas, todos os dias milhares de refugiados chegam a Lesbos, que antes de tudo isto tinha uma população que rondava os 80 mil habitantes. Não estava, naturalmente, preparada para uma tarefa de tal ordem. A ajuda internacional foi mais do que um pedido: tornou-se uma obrigação.

Entre os vários voluntários que chegaram a Lesbos estava Fiorella Crotti. Argentina de 28 anos trabalhava como nadadora salvadora em Espanha quando foi desafiada a aceitar a missão. A mensagem que lhe chegou ao telemóvel foi mais dúbia que a sua resposta. «Estarias disposta a vir para a Grécia ajudar? Pensa nisso», leu. Respondeu logo: «Não há nada para pensar.»

Fez-se ao caminho. Fiorella seria uma de muitas, mas o que a torna especial para esta história é o seu passado. Fez da natação a sua vida e representou, inclusive, a seleção da Argentina nas camadas jovens. O desporto foi a forma que encontrou para solidificar a ligação a algo que a apaixonou desde criança: o mundo aquático.

Não teve uma carreira longa, porque os limites de uma piscina eram demasiado curtos. Preferiu o mar e fez-se ao caminho. Deixou Ciudad Jardín, a terra natal, perto da capital argentina Buenos Aires. Mudou-se para Espanha, depois de algum tempo como nadadora-salvadora na Patagónia.

Quando a foto da criança síria morta numa praia da Turquia chocou o mundo, a vida de Fiorella também mudou. As provas nas piscinas, a pressão da competição já eram, apenas, uma recordação. Dez dias depois do dia que mudou a forma como a crise de refugiados passou a ser encarada pelos europeus, recebeu a tal mensagem que a fez mudar-se para a Grécia.

O futuro continuaria a ter água, mas sem cloro. Continuaria a ter pressão, mas de outro tipo. A pressão de ajudar outras pessoas a conseguir um futuro. Poderia dizer-se futuro melhor, mas a expressão simples é a mais verdadeira.


Fiorella e a sua equipa de salvamento

As dúvidas da família: um filho herói, mas a que custo?

Pouco tempo depois de chegar a Lesbos, Fiorella fiou sem telemóvel. Estava incomunicável e num país a milhares de quilómetros de casa. Deixar tudo para ajudar os outros acarreta um problema, várias vezes: a incompreensão da família.

«O meu pai conta que todos lhe diziam ‘que orgulho na tua filha’, ‘que maravilha’…Mas ele e a minha mãe não sentiam orgulho. Sentiam um medo muito profundo», contou Fiorella, em entrevista ao jornal «Clarín», já depois de chegar à Argentina, onde está por estes dias.

A mãe, Mariela, pensava de forma diferente. Sabia que conseguiria dar conta do recado a nível profissional, mas temia as implicações psicológicas que poderia trazer toda a experiência. «A minha mãe dizia que, como eu estava a receber gente que escapava de uma guerra, de certa forma estava também a viver num clima de guerra», explica.

A missão de Fiorella em Lesbos era simples mas delicada: ajudar a trazer até terra quem lá tentava chegar. Muitas crianças chegaram nos seus braços, depois de nadar até aos barcos que os transportavam. Integrava uma equipa que não tinha mais de cinco pessoas para essa tarefa. Ganhou a alcunha de «anjo do mar».

A experiência durou 15 dias. Longos dias. O relato de Fiorella não deixa dúvidas sobre o que encontrou: «Vi desespero em todas as suas formas. Não me vou esquecer nunca das pessoas que me estendiam os braços e me passavam os seus filhos, sem me conhecer. Diziam-me com os olhos: salva-os, tira-os daqui.»

«Pensavam que éramos polícias e os íamos obrigar a voltar»

A missão de Fiorella foi muito para lá do simples transporte de pessoas. Havia decisões duras a tomar. Em cenários de naufrágio, por exemplo, a equipa de Fiorella tinha de decidir quem salvar primeiro. Muitas vezes, apenas quem salvar, pois não havia tempo para tudo.

O choque cultural e o medo que encontrou nas pessoas que tentava salvar também a marcaram. Os homens fugiam dela quando os tentava salvar. Os muçulmanos, recorde-se, não podem tocar noutras mulheres. Outros desconfiavam daquele grupo que surgia para os tentar ajudar. «Pensavam que éramos polícias e os íamos obrigar a voltar», conta.

Na praia, mais calmos, tudo mudava. Os agradecimentos multiplicavam-se. Enchiam a alma e davam força para continuar. Aguentou 15 dias neste cenário de pressão inimaginável. Voltou à Argentina para junto dos pais e da terra onde se apaixonou pela água e se tornou desportista de elite. Por pouco tempo: antes do final do ano tem como missão estar de novo em Lesbos.