«Depois do Adeus» é uma rubrica do Maisfutebol que conta como é a vida depois do futebol para muitas estrelas, ou candidatas a estrelas, de outrora. A história de Ramires poderia ser mais uma para enquadrar nesse espaço, mas o médio decidiu que o fim tinha chegado cedo de mais.

Por outras palavras: Ramires, atual jogador do Vila Nova de Goiânia, Brasil, deixou o futebol com apenas 24 anos para trabalhar numa vidraceira. A diferença para tantas outras histórias é que voltou. E voltou com sucesso que nunca antes tinha conseguido, a ponto de já ter celebrado a subida à Série B do Brasileirão e sonhar com uma oportunidade no principal escalão do futebol brasileiro.

É importante sublinhar que, mesmo tendo já vivido tudo isto, Ramires ainda nem sequer está na casa dos 30 anos. Tem 28 e, como o próprio diz, «muito para jogar ainda».

O Maisfutebol conversou com Ramires que nos contou, na primeira pessoa, a sua história. Que tinha tudo para ser mais uma de sonhos traídos no futebol, mas que é, afinal, a de quem viveu uma experiência que o levou a amar o jogo com ainda mais força. Um relato de superação constante.

«Um jovem no início de carreira tem sempre muitas expetativas e eu não era diferente. Mas sempre que parecia que ia acontecer uma coisa boa, algo dava errado. Eu via outros jogadores a quem tudo dava certo e perguntava por que não era assim comigo. Fiquei desmotivado», assume.

Ramires começou a jogar futebol na Bahia, de onde é natural. «Comecei no Vitória da Conquista», explica. Andou por clubes locais até se aventurar na Europa. Foi o início do fim.

«Fui jogar para a Croácia, para o NK Imotski, da II Divisão, em 2011. Não correu nada bem. Muita coisa não deu certo», lamenta. «Voltei para o Brasil e andava desmotivado devido a várias situações em que parecia que tinha tudo para acontecer algo muito bom e ficava tudo na mesma», continua.

Cada final de temporada significava a busca por um novo clube e o stress pela oportunidade que não surgia. Com problemas financeiros optou por uma medida drástica: desistir. Arranjou emprego numa vidraceira e pensou que seria um ponto final. Era só uma vírgula, afinal.

Um amigo tirou-o dos vidros: «O teu dom é o futebol!»

Ramires não chegou a estar sequer um ano sem jogar futebol, contudo. Quando a sua história ganhou eco, veio a oportunidade que antes parecia sempre longe:  «Um amigo, Emerson Freitas, foi ao meu trabalho disposto a tirar-me de lá. Disse que aquilo não era para mim, que o meu dom era jogar futebol e tinha de voltar.»

O amigo levou-o a treinar ao Vitória do Espírito Santo e agradou. «Pedi a demissão na vidraceira e voltei a jogar futebol. Foi sempre a subir a partir daí», atira, entre risos.

Este ano chegou ao Vila Nova e ajudou a equipa a subir à Série B. Ajudou não é apenas forma de dizer. Marcou o golo da vitória sobre a Portuguesa dos Desportos, nos quartos de final, em casa. Um jogo histórico para o clube de Goiânia. Mais de 23 mil nas bancadas de um embate do terceiro escalão.

O Vila Nova venceu novamente em São Paulo e garantiu o acesso às meias-finais, onde voltou a ser feliz, afastando o Brasil de Pelotas. A promoção está garantida, falta o título para discutir com o Londrina, na grande final.

Resumo do jogo com golo de Ramires



Um mês com medo de um vidro estourar


Ainda hoje Ramires tem dificuldades em explicar como caiu no poço que o levou a deixar os relvados: «Fiquei desencantado com o futebol. Perdi a paixão. Era muito duro o que tinha de enfrentar.»

«Umas vezes apareciam uns jogadores mais badalados e ficavam com os lugares, outras vezes nem eu sei explicar porquê. Parece que tinha sempre de correr mal», lamenta.

Mas não se queixa do tempo que passou a fazer vidros. «Serviu de ensinamento», diz. «Na altura, antes de deixar o futebol, tomei decisões que hoje não tomaria, mas não me arrependo de ter ido para a vidraceira. A minha família precisava de ajuda. Só a minha esposa trabalhava e tinha de colocar dinheiro em casa», explica.

Na fábrica, o início foi complicado porque o trabalho é duro. E assustador, até, algumas vezes.

Ramires fala de um primeiro mês de medo: «Trabalhar com vidro é difícil, às vezes o vidro estoura e estamos sempre com medo que nos possamos cortar. Era complicado. Havia material de segurança, claro, mas quem não está habituado fica sempre com medo até habituar-se.»

«Um mês depois estava entrosado. Mas via que aquele não era o meu lugar. Sentia falta do futebol, pensava em tudo que já tinha feito antes. Jogar futebol por hobbie não me chegava. Quando voltei decidi que era para sempre. Sentia tanta falta do futebol que à primeira oportunidade voltei…»
, recorda, entre risos.



«Ídolos? Eu e basta…»

Aos 28 anos e com uma carreira longe dos padrões habituais, Ramires ainda tem espaço para sonhos. Chegar à Série A é um deles. Outro é «fechar este ano com chave de ouro», o que significaria sagrar-se campeão.

Ao longo da conversa com o nosso jornal, a questão que colocou mais dificuldades a Ramires foi mesmo identificar um ídolo no futebol.

«Perguntam-me muito isso mas a verdade é que não tenho nenhum ídolo. Não me espelho em nenhum jogador. Quero ser eu mesmo e basta (risos). Agora identifico-me com alguns jogadores pelo que fazem fora do campo, como é o caso do Zé Roberto e do Kaká», explica.

De Portugal, admite conhecer apenas o básico. «Assisto pouco futebol português», diz. Lembramos que joga no clube de onde saiu Fernando, antigo médio do FC Porto, agora no Manchester City. «Sim, conheço. Há muitos brasileiros aí. Conheço o FC Porto, Benfica, Sporting, Braga. Estou a dizer certo?», questiona em tom bem disposto.

E jogadores também conhece: «Só no Benfica há o Luisão, Júlio César ou o Anderson Talisca…»

Para remate final, um comentário meio a sério, meio a brincar: «Quem sabe eu não vou para Portugal também um dia».

Para quem já passou por tanto, nada parece impossível, de facto.

Reportagem sobre a festa no Vila Nova-Portuguesa