Aconteceu. O Cova da Piedade subiu à II Liga. Aconteceu a 30 de abril de 2016.

«O sonho comanda a vida», diz o presidente Paulo Veiga, no cargo desde junho de 2015. É uma frase feita, da autoria de António Gedeão, mas também um lema de vida. Só que no Cova da Piedade não se sonhou apenas. O objetivo da época 2015/2016 era consolidar o projeto no Campeonato de Portugal, mas aconteceu mais do que isso.

Assim, que não se diga «jamais» só porque é um clube da Margem Sul. Ali há valor, trabalho, dedicação e ainda muito por descobrir.

Nesta reportagem do Maisfutebol sobre o Cova da Piedade, contamos porquê.

Foi com todo o mérito que o clube carimbou o acesso à II Liga no último sábado, depois de vencer a Série H do Campeonato de Portugal e de ganhar a Zona Sul de acesso à segunda, a duas jornadas do final da prova.

«Ninguém esperava que fosse possível. Tínhamos um orçamento muito mais baixo do que outras equipas, que tinham a subida como objetivo, mas a certa altura passámos a ser ‘um caso sério’. Com seis pontos de vantagem na primeira volta, reformulámos o objetivo, acreditámos e conseguimos», justifica o treinador, Sérgio Boris, que já em 2012/2013 tinha levado o clube a vencer o Distrital de Setúbal.

Ainda faltam dois jogos e a final do Campeonato de Portugal com o vencedor da Zona Norte, mas se o título de campeão escapar ao Cova da Piedade, já muito foi alcançado esta temporada.

«Distraíram-se connosco. Apresentámos mais qualidade do que esperavam. Temos um grupo muito forte, muito unido e capaz, que quis sempre fazer mais e melhor e mostrar que poderia alcançar coisas importantes. Vamos ver até onde podemos ir», acrescenta o presidente.

Ainda assim, já é certo, serão dois os clubes do distrito de Setúbal nos campeonatos profissionais de futebol na próxima época: o Vitória e o Cova da Piedade. Não acontecia desde 2005/2006, altura em que o Barreirense, que tinha subido na época anterior, voltou a descer à II Divisão B.

Clube Desportivo da Cova da Piedade, 69 anos de história: Boa Morte, Marco Silva e outros nomes

Fundado a 28 de janeiro de 1947, o Cova da Piedade chega aos 69 anos ao ponto mais alto da sua história: vai tornar-se num clube profissional e medir forças com clubes históricos do futebol português na II Liga.

Por lá passaram, na formação, Luís Boa Morte, Lucas João, André Carvalhas, Hernâni e Marco Silva e, enquanto sénior, João Meira. Agora, a equipa principal conta com Silas e com nomes que já vestiram a camisola de vários clubes da primeira e segunda Ligas.

Vítor Moreno, Rui Varela e Marco Bicho, por exemplo, levaram o Barreirense à II Liga em 2004/2005 e agora colocaram o Cova da Piedade no mesmo patamar depois de serem também campeões com o Estoril e o Beira-Mar, os dois primeiros, respetivamente.

Onze do Cova da Piedade antes de um jogo do Campeonato de Portugal

Treinar de manhã, trabalhar à tarde: a vida de uma equipa com 12 jogadores acima dos 30 anos

A vida de jogador num clube amador não é fácil. Com alguma idade, pior.

Quase todo o plantel, como a equipa técnica e a direção do Cova da Piedade tem outros trabalhos: treina de manhã, sempre às 10h30, e depois de almoço vai estudar ou trabalhar. A «equipa de idosos», como alguns a apelidavam, tem 12 jogadores acima dos 30 anos, mas conta com alguns jovens no plantel. A diversidade é muita, a paixão é a mesma: o futebol.

Por isso, logo no início da época foi estipulado o horário dos treinos e a condição de que só ficaria quem pudesse conciliar estas «duas vidas» e tivesse capacidade para ajudar o Cova da Piedade.

Assim aconteceu e agora «o caso vai mudar de figura».

Rúben Nunes (24 anos), que tem capitaneado a equipa nos últimos jogos, na ausência de Ricardo Aires, tem essa noção: «Sou professor de educação física e personal trainer, este ano deu para conciliar, para o ano vou ter de abandonar essas duas coisas por uns tempos.»

Já André Ceitil (21 anos), um dos heróis desta época na Taça de Portugal, que tem o 12.º ano, agora não poderá pensar em voltar a estudar: «Na II Liga a vida vai ser totalmente diferente, com jogos a meio da semana e ao fim de semana e viagens de Norte a Sul. Mas sempre sonhei ser jogador profissional, por isso vou dedicar-me a isto.»

Por outro lado, Silas, que já anda nestas andanças há muito tempo e tem 39 anos, só se dedica ao futebol e não faz planos: «Quando me vou retirar é uma pergunta que faço a mim mesmo há algum tempo, mas ainda não encontrei resposta. Vou continuar até sentir que o meu corpo é capaz e enquanto tiver disposição e espirito de sacrifício.»

Estádio Municipal José Martins Vieira

E o que mais vai ter de mudar agora?

Muita coisa. Afinal o clube passa de amador a profissional. «Em termos de infraestruturas temos de mudar muita coisa, a começar pelo relvado que é sintético e vai ter de ser natural, e da iluminação que, com jogos à noite e transmissões televisivas, vai ter de ser melhorada», conta Paulo Veiga.

O clube vem de uma fase menos positiva financeiramente e ainda não está de «boa saúde», mas o dirigente, que disse ter quase tudo fechado com um investidor, espera que essa situação também mude em breve. Até porque a II Liga exige outras condições financeiras.

Quanto à equipa, o presidente deixa quase tudo nas mãos do treinador com quem renovou recentemente até 2018.

Ainda assim, Sérgio Boris não pensa já no plantel da próxima temporada: «Esta época ainda não terminou e para já o foco está no que ainda falta, mas claro que a equipa vai ter de se adaptar às exigências da II Liga. Vai haver saídas e entradas, como acontece em todas as equipas.»

Já Silas, que é de todos o mais experiente, por ter jogado na Liga, no estrangeiro e na seleção, tem consciência do que é preciso mudar e acredita que o Cova da Piedade pode ser sucesso no futuro com apenas algumas adaptações.

«Muitos dos jogadores deste plantel já conhecem a II Liga e a nossa equipa não é assim tão diferente das desse campeonato. Acredito que seja apenas necessário, com tudo o que ao clube se vai exigir por se tornar profissional, mais esforço de todos», diz.

Plantel, equipa técnica e direção do Cova da Piedade 2015/2016

Para já, é ainda tempo de celebrar o feito histórico

30 jogos, 18 vitórias, oito empates e quatro derrotas com 45 golos marcados e 22 sofridos. Foi assim que o Cova da Piedade fez história.

«Este grupo é fantástico. Além da união, tinha noção que com a qualidade individual e de toda a equipa, com a experiência dos mais velhos e a ajuda do Silas, que foi muito importante para nós, isto seria possível», refere Marco Bicho, que já tinha vivido a mesma experiência com o Barreirense.

Quem não a tinha vivido, entre muitos jogadores, eram os adeptos que nesta caminhada foram fundamentais e no jogo das decisões, com o Angrense (2-1), compareceram em massa no Municipal José Martins Vieira.

«A festa foi fantástica com os nossos adeptos. Depois do jogo fomos ainda surpreendidos com um passeio de autocarro pelas ruas da Cova da Piedade e fomos recebidos na Câmara Municipal de Almada», conta André Ceitil.

Tudo à grande e merecido.

Já Sérgio Boris reconhece que, «alcançar mais este título por este clube teve um sabor especial» e perceber que pôde contribuir para «a felicidade das pessoas da freguesia é gratificante».

«É-se quase sempre de um clube grande, mas as pessoas também sentem muito o Cova da Piedade. Um senhor disse-me que esperava por este dia há 40 anos. Há melhor do que tornar isto real?», pergunta.

A resposta? Bem sabemos que não... e já há quem peça mais. «No café já me disseram que agora temos de chegar à I Liga», conta André Ceitil.