Chama-se Rafael Kneif, tem 23 anos, é brasileiro com raízes em Portugal e vive um drama peculiar que questiona as normas vigentes na Roménia relacionadas com o direito ao trabalho. O que poderia ser um passo importante rumo ao sonho de se afirmar como jogador de futebol transformou-se rapidamente no maior pesadelo da carreira e da vida deste natural de Sorocaba.

Bisneto de portugueses de Leiria, Rafael Kneif, que tem dupla nacionalidade, chegou à Roménia em janeiro de 2015. O destino era o FC Ceahlaul, onde o compatriota Zé Maria, antigo jogador do Inter de Milão, era o treinador.

Jogava no Junior Team, equipa da cidade de Londrina, no estado do Paraná, e, por isso, a I Divisão da Roménia era um cenário tentador.

«Qualquer jogador sonha atuar na Europa, falaram-me no projeto do clube para chegar às competições europeias. O presidente era um italiano, Angelo Massone. Estava a começar e era todo cheio de promessas que nos enchiam os ouvidos. Não demorou muito a perceber que era tudo mentira», conta Rafael Kneif em conversa com o Maisfutebol

Lateral esquerdo, Kneif vinha suprir uma lacuna no plantel e Zé Maria, também em fase inicial no clube, aprovou a sua contratação. Com tudo assinado, era começar a treinar e jogar. Foram 14 jogos até ao final da época 2014/15. Os últimos bem mais difíceis do que os primeiros.

«Recebi metade do salário de janeiro [2015]. Até hoje, não recebi mais nada», conta. Vinham as promessas de pagamento e os pedidos para aguardar. Uns atrás dos outros. A época terminou e Rafael Kneif continuava apenas com meio salário a acrescentar ao restante dinheiro que havia ganho no futebol.

Terminada a época voltou ao Brasil, de férias. Pagou a viagem do seu bolso e com a ajuda dos pais. Pensou que o verão pudesse ajudar a compor as coisas mas sempre que espreitava a conta bancária o resultado era o mesmo: nada de pagamentos.

Teve, então, de tomar uma medida mais drástica: «Quando chegou a hora de voltar para começar a nova época não fui. Pensei muito, mas os meus pais foram logo absolutamente contra a minha ida para a Roménia enquanto não recebesse. Iria ter de pagar novamente a viagem do Brasil para lá e não tinha garantias de vir a receber nada. O clube tinha entrado em insolvência.»

Rafael em ação na Roménia (Foto retirada do Facebook do jogador)

A notícia, de junho de 2015, da falência do FC Ceahlaul deu uma esperança curta, arrancada assim que as normas vigentes no país lhe foram explicadas por um advogado: o regime jurídico da insolvência naquele país estabelece que os clubes não devem pagar nem libertar os jogadores até ao momento em que reestruturem as suas finanças.

Resumindo: Rafael Kneif continuava sem receber, o clube entrou em insolvência e nem a rescisão de contrato conseguia. Entrou com um processo na FIFA. A direção do clube respondeu com um processo contra o jogador no mesmo organismo e também nos tribunais civis, alegando quebra de contrato, queixando-se da falta de comparência depois das férias.

O FC Ceahlau exige uma indemnização de 180 mil euros a Rafael Kneif. «É inacreditável. Eu acho que ninguém no mundo vai dizer que eu não tenho razão», desabafa. Contudo, enquanto os trâmites legais decorrem, vai perdendo tempo: «Continuo preso ao clube, sem receber e não me dão a rescisão. Já perdi imensas oportunidades, na Série A e na Série B aqui do Brasil. Tive propostas para ganhar até mais do que lá, mas enquanto não ficar livre deste contrato não posso voltar a jogar».

«O mais incrível é que continuam a contratar jogadores!»

A situação arrasta-se e ainda não tem solução. No limite, Rafael Kneif terá de esperar até junho, altura em que termina o contrato para poder voltar a jogar. E, depois, aguardar por uma resposta dos processos que estão em marcha.

A situação, de resto, já tinha sido denunciada por Zé Maria, o treinador que aprovou a contratação do compatriota. Em abril do ano passado, quando deixou o clube depois de ser demitido duas vezes na mesma semana denunciou o que considerou «escravatura» numa entrevista à «Gazzetta dello Sport».

Além de não pagar, Angelo Massone foi várias vezes ao balneário ameaçar com «treinos de castigo» aos jogadores por causa das derrotas, algo que Zé Maria diz que não aceitava enquanto jogava, muito menos agora como treinador.

«Fiquei com pena dos jogadores, sinceramente. Percebi que alguns nem tinham dinheiro para lanchar», comentou o brasileiro na mesma entrevista.

Rafael Kneif era, então, um dos que aguardava pacientemente para ser pago. Agora, naturalmente, já não acredita numa solução que não a rescisão.

«Não tenho condições de voltar para um clube que não me paga. E o pior é que eles continuam a contratar jogadores! Provavelmente não sabem de toda esta situação e é por isso que quero divulgar ao máximo a minha história. Não quero ser mais um, quero ser o último», desabafa.

«Como eu ia voltar para lá? Ia viver de quê? Tenho de comer, tenho de me deslocar. Se não me pagam como ia voltar? Saí aos 13 anos de casa, ganhei algum dinheiro no futebol mas não dá para tudo», acrescenta.

Questionamos se houve alguma tentativa de negociação e o lateral explicou: «Fizeram-me uma proposta em que me davam a rescisão se eu desistisse de receber o dinheiro que me devem, mas não tiravam o processo. Se tirassem talvez aceitasse. Talvez. Não posso dizer que sim porque ainda me devem uma quantia significativa. Além das oportunidades que já perdi. Poderia estar a ganhar mais dinheiro nesta altura. Mas para isso tenho de abrir mão do que é meu por direito? Não é fácil.»

A carta da mãe que expôs o caso ao mundo

Mesmo que já tenha passado quase um ano desde que os primeiros problemas começaram a surgir, só agora o caso começa a ganhar contornos mundiais. Recorde-se que o FC FC Ceahlau entrou em administração em junho mas ainda compete. Terminou a última edição da Liga romena no último lugar e está, atualmente, também em último na II Divisão.

A mãe de Kneif, que bem de perto lidou com a situação, expôs o caso ao mundo ao enviar uma carta à FIFPro.

«Ele é um ser humano e deveria ser tratado como um. Já li histórias de jogadores romenos que tiveram de ir apanhar tomates para ganhar a vida, porque não tinham dinheiro. Ouvi falar da campanha da FIFPro ‘Game Changers’ para mudar o sistema de transferências e por isso entrei em contacto. Na Roménia, os jogadores estão completamente nas mãos dos clubes», escreveu a mãe.

A verdade é que as normais da FIFA indicam que qualquer jogador pode requerer a rescisão com justa causa do contrato caso tenha três meses de salário em atraso, desde que apresentem o caso em tribunal. O problema é que esses casos costumam demorar, em média, dois anos a ser resolvidos, o que limita as opções.

Rafael Kneif não tem palavras para a atitude da mãe: «Foi extraordinária. Cansou-se disto tudo e decidiu fazer alguma coisa. Os meus pais têm ajudado muito. Têm feito de tudo para que a justiça prevaleça.»

Rafael nos tempos do Coritiba (Foto retirada do Facebook do jogador)

Apesar disso, mudanças visíveis ainda não aconteceram. Rafael rompeu contrato com o agente que o levou para a Roménia, embora garanta que não guarda mágoa. «Foi apenas uma escolha equivocada. Ajudou-me na altura a encontrar um advogado para tratar da minha situação, mas depois separamo-nos», explicou, preferindo não revelar o nome do empresário.

Sobre Angelo Massone, deixa o desabafo final: «Penso muitas vezes que ele arquitetou tudo isto. Acho que ele nunca pensou verdadeiramente em pagar.»

Segundo dados da FIFA há 22 clubes em processo de insolvência na Roménia. O FC Ceahlaul, estima a imprensa local, tem dívidas de mais de 500 mil euros só em salários a jogadores. O Sindicato dos Jogadores portugueses já emitiu um comunicado a alertar para este tipo de situações.