* Foto de capa: Filipe Ferreira, João Vilela e Ricardo Dias (da esquerda para a direita), três jogadores do Belenenses na universidade

O pai estava em Lisboa para debelar um problema de saúde e aquele jovem de 12 anos viu no infortúnio uma oportunidade para começar a jogar futebol. Um pouco à revelia do pai, calçou umas chuteiras e tentou a sorte nos Repesenses, um clube sediado em Repeses, arredores de Viseu.

«Quando ele regressou a casa, disse-me que tinha de ter boas notas para continuar a jogar. Se não, o equipamento ia todo para a caldeira», recorda, 20 anos depois, Nuno Piloto.

O agora jogador da Académica não só levou a sério o aviso do pai, como o transportou até hoje. Em 2009, aos 27 anos, tornou-se no primeiro futebolista profissional português a tornar-se mestre, concluindo com a classificação de Muito Bom a tese de mestrado em Medicina Legal e Ciências Forenses, em Coimbra.


Nuno Piloto (à direita na foto) foi o primeiro jogador no ativo a tornar-se mestre, em 2009, em Coimbra: «A Académica já teve uma ligação mais forte com a universidade, mas acho que os jogadores devem aproveitar a oferta de cursos existente na cidade»

São cada vez mais os futebolistas que apostam na formação académica em paralelo com a atividade profissional desportiva.

«Há exemplos de jogadores que têm uma carreira boa, ganham dinheiro mas que depois passam por dificuldades. Tem de haver uma maior consciencialização de que o futebol dura até aos 35 anos e que, depois, temos outros 35 anos pela frente. É fundamental estarmos preparados e parece-me que essa noção está a ser cada mais absorvida», justifica Nuno Piloto.

Foi a pensar nisso que Zé Pedro, que este ano se transferiu do Limianos (CNS) para o Rio Ave, antecipou um plano que não pensava executar tão cedo. A partir desta semana é um dos novos caloiros da licenciatura em Treino Desportivo, no ISMAI. «Sempre tive a ideia de tirar um curso superior, mas pensava que isso só ia acontecer quando terminasse a carreira. Não vai ser fácil conciliar, mas acho que vou conseguir», diz ao  Maisfutebol.


Tarantini tirou duas licenciaturas e um mestrado na área do desporto: «Todas as decisões que tomei foram sempre para preparar o meu futuro»

Zé Pedro não é o único jogador do Rio Ave inscrito num curso superior: há André Vilas Boas, Guedes e Aníbal Capela. Tarantini, capitão dos vilacondenses, até tem duas licenciaturas (Ciências do Desporto e Educação Física e Desporto Escolar) e um mestrado.

Tarantini acabou o secundário com média de 16 valores, mas uma nota baixa na prova de ingresso impediu-o de entrar na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. As circunstâncias levaram-no para a Covilhã, numa altura em que tornar-se futebolista profissional não era a grande prioridade.

Mas foi lá que conseguiu conjugar a formação académica com o desporto, no Sp. Covilhã, onde se estreou como sénior. «Há percalços na vida que nos levam para caminhos melhores», refere.

Tarantini descreve o mundo do futebol profissional como um bolo que nem todos têm a oportunidade de provar e onde as fatias não são proporcionais. Por isso mesmo defende a importância de uma escapatória. «Nem todos têm ordenados de topo e eu faço parte da fatia que vai ter de continuar a trabalhar quando parar de jogar», admite.

«Os jogadores estão a começar a tomar consciência de que não basta ser-se futebolista. Depois desta atividade há que procurar outra. Têm de ser ativos na procura de soluções e não podem ficar à espera do fim da carreira», sublinha Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF).
 
O abandono precoce

Um estudo que incidiu sobre jovens futebolistas internacionais pelas diversas seleções nacionais, entre 2002 e 2003, concluiu que 76 por cento deles tinham resultados negativos e que a taxa de abandono escolar precoce rondava os 60 por cento.

Um dos jogadores dessa amostra podia ter sido Hugo Monteiro, com passagens por todas as seleções até aos sub-20. O agora jogador do Arouca deixou a escola após o 9º ano. Agora, diz estar a tentar descobrir um caminho alternativo. Vai para o terceiro ano do curso de Gestão de Empresas na Universidade Lusíada do Porto. «Tenho 30 anos e o fim começa a aproximar-se do fim», reconhece.

Hugo Monteiro (ao fundo) numa das aulas do curso de Gestão de Empresas: «Há jogadores que, por falta de informação, acabam por cair em situações complicadas quando deixam o futebol»

«É difícil meteres na cabeça de um miúdo de 18 ou 19 anos, que já ganha razoavelmente bem para a média em Portugal, que ele tem de ir estudar. Começas a ter uma boa vida – cansativa mas boa – e eles perguntam-se a si mesmos para que é que vão estudar. Para alguns, depois é tarde», diz João Vilela, médio que chegou esta época ao Belenenses depois de vários anos do Gil Vicente.

Aos 30 anos, Vilela espera que não seja tarde para ele, que interrompeu a formação académica há cerca de dez anos, quando estava no Benfica. Na altura, entrou em Ciências do Desporto, na Faculdade de Motricidade Humana. «Agora estou mais virado para a Gestão do Desporto. Pedi transferência para esse curso. Estou à espera de uma resposta.»

Ricardo Dias, companheiro de João Vilela no Belenenses, faz parte de uma exceção de internacionais que não abandonou os estudos. Com 50 internacionalizações pelas várias seleções jovens, esteve presente no Mundial sub-20 em 2011, competição onde Portugal atingiu o segundo lugar. Com 18 anos, entrou em Engenharia Eletrotécnica, na Faculdade de Engenharia do Porto, de onde mudou, depois, para Economia, na Universidade de Aveiro.

«Nós, jogadores, começamos a ganhar dinheiro cedo. E eu sempre senti a necessidade de saber o que faria ao meu dinheiro. Para além disso, os casos negativos de jogadores dão mais motivação para estudar, no sentido de preparar-me para o futuro e de ter bases a nível académico para, quem sabe, um dia ter o meu próprio negócio», diz.

Ricardo Dias jogou no Beira-Mar entre 2011 e a primeira metade da época de 2014/15. Está matriculado na Universidade de Aveiro, onde faz os exames, mas acompanha as cadeiras em Lisboa, no ISCTE
 
Tarantini juntou o útil ao agradável

«Sucesso defensivo no futebol: análise de tendências espácio-temporais no passe entre linhas.» Foi este o tema da tese de mestrado que Tarantini defendeu em outubro de 2014 como média de 18 valores. O jogador do Rio Ave usou o curso para melhorar enquanto futebolista. «Foi uma ideia que tive enquanto jogador. Queria saber como era possível anular aquele espaço entre linhas e o meio-campo», conta.

Para o trabalho, Tarantini analisou uma equipa da Premier League. «A tese ajudou-me a estar mais atento a certos aspetos. Hoje consigo ter uma perspetiva global maior sobre o meu posicionamento e o dos meus colegas», admite.
 
Sem férias e com menos tempo de descanso

Os jogadores contactados pelo  Maisfutebol admitem que conciliar o futebol com a alta competição não é fácil. Requer, aliás, alguns sacrifícios, mas é possível ainda que muitas vezes possam demorar mais tempo a completar os estudos.

«Há dois ou três anos que não tenho férias porque os exames são em junho, no mês em que não há futebol», aponta Hugo Monteiro.

André Fontes, médio do Moreirense, é licenciado em Gestão de Empresas, curso que completou em Coimbra fazendo quase todas as cadeiras por exame. «Tinha de faltar a muitas aulas e era complicado. Agora estou no mestrado, mas congelei a matrícula. Falta-me a tese, mas isso obrigava-me a trabalhar com um professor várias vezes por semana», conta.

André Fontes em ação num jogo com o FC Porto em janeiro: «As coisas mudam de repente no futebol. Num dia estás na boca do mundo e depois desapareces»

Ricardo Dias explica que o elevado volume de treinos obriga a faltar a muitas aulas. «Temos sempre de estar a apanhar o comboio e há exames que calham em dias de treinos e de jogos. Faltar aos treinos? Pode acontecer muito pontualmente, mas não nos sentimos à vontade para fazer pedidos desse género. Somos profissionais e acho que não devemos.»

João Vilela diz que este ano há outro fator que pode atrasar os estudos. Dele, se conseguir a transferências para Gestão do Desporto, de Ricardo Dias e de Filipe Ferreira, lateral esquerdo do Belenenses que está a três cadeiras de concluir a licenciatura em Gestão de Empresas, no ISCTE. «Esta época o horário vai ser sobrecarregado. Estamos na Liga Europa e isso faz com que tenhamos menos folgas, viagens à quarta-feira e jogo à quinta. São logo dois dias em que não dá para ir às aulas», aponta.


João Vilela: «É difícil meteres na cabeça de um miúdo de 18 ou 19 anos, que já ganha razoavelmente bem para a média em Portugal, que ele tem de ir estudar»

«Os horários são mesmo o grande problema. No ISCTE o meu curso não tem pós-laboral e nós treinamos de manhã. Não podendo escolher entre ir às aulas de manhã ou de tarde, por vezes é impossível. Essa é a grande barreira», conta Filipe Ferreira.

Por isso mesmo é que Afonso Taira, médio do Estoril, se inscreveu em regime de tempo parcial, fazendo uma média de três cadeiras por semestre no curso de Gestão de empresas no ISCTE, onde também está Filipe Ferreira. «Não é compatível fazer tudo em termos de atenção e foco. O futebol consome muita energia», diz. «Às vezes, como o cansaço, não apetece», corrobora o jogador do Belenenses.

Tarantini considera que é necessária disciplina. «Pegamos nas nossas horas vagas e, em vez de irmos ao  shopping ou ficarmos a ver televisão, aplicamo-nos um pouco», diz. Nuno Piloto concorda: «Já tive de aproveitar as horas de descanso em estágios para estudar. Escrevi parte da minha monografia da licenciatura a seguir ao almoço. Enquanto os meus colegas estavam a dormir, eu estava ao computador a trabalhar.»
 
Isto já não é como antigamente mas…

Afonso Taira é filho de José Taira, antigo médio que entre os anos 90 e 2000 passou por clubes como o Belenenses, Salamanca e Sevilha, tendo chegado a internacional por uma vez. Apoia-se no exemplo da geração do pai para constatar que o futebolista já não é hoje uma espécie de autómata que vive exclusivamente para as quatro linhas. «Esta geração está cada vez mais desperta, viva para as coisas que a rodeiam. Vejo jogadores com mais noção do mundo que anda a par do futebol.»

Evangelista concorda que os jogadores manifestam hoje em dia uma maior preocupação em especializarem-se noutras áreas, mas diz que o caminho a percorrer ainda é longo. Até porque, alerta, há questões culturais impregnadas e difíceis de combater.

«As universidades em Portugal não estão claramente preparadas para que consigamos conciliar facilmente a alta competição com os estudos. Faltam-me três cadeiras para terminar o curso e sou estudante em regime parcial», diz Taira

«No futebol, tirando uma ou outra exceção, ainda não se promove a relação entre o binómio formação e desporto. As exigências dos treinos, a cultura desportiva e a procura por ganhar sempre acabam por falar mais alto», diz apontando também o dedo às famílias dos jovens atletas: «A relação com a escola começa dentro da família e há pais que dão prioridade ao desporto em detrimento da formação. Acreditam que os filhos podem chegar ao patamar dos grandes jogadores, mas isso só está ao alcance de pouco.»

Tarantini, o caçula da família, concorda. «Tenho três irmãs mais velhas e todas elas são licenciadas: em Enfermagem, em Química e em Matemática. Os meus pais sempre procuraram que eu e as minhas irmãs tivéssemos uma formação académica melhor do que a deles», conta, antes de lançar um desafio aos jogadores considerados referências para os mais jovens.

«Deviam participar em ações de sensibilização no sentido de alertar para a importância de não abandonarem os estudos cedo. Quem é que vai ouvir o Tarantini?»

Para Afonso Taira, abandonar os estudos precocemente para se dedicar ao futebol sempre esteve fora de questão. Quando terminou o secundário, com média de 17 valores, a mãe incentivou-o a preparar um caminho alternativo ao futebol. «Perguntou-me o que é que eu achava de levar a cabo duas frentes. O curso sempre foi um plano que queria levar a par do futebol. Se é um plano B? Não. É uma etapa que quero concluir.»

Para incentivar os futebolistas a prepararem-se para o futuro pós-futebol, o SJPF já tem protocolos celebrados com universidades e um conjunto de outros apoios preparados. «Estamos a lançar um cheque-formação, que consiste em dar aos jogadores em determinadas condições um montante para seguirem cursos de formação, sejam eles na faculdade ou  workshops. Depois de a carreira terminar, não é suficiente ter-se sido um excelente jogador. É preciso mais, mesmo para quem quer continuar ligado ao futebol», reitera Joaquim Evangelista.

Bom ano letivo!


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