À exceção dos altifalantes onde ecoa o hino nacional, o silêncio. Em Pyongyang não há cafés ou lojas. Não há publicidade, exceto a propaganda do regime de Kim Jong-un. Apesar dos mais de dois milhões e meio de habitantes, falta também o burburinho das ruas de uma grande cidade: nem conversas em voz alta, nem o som de telemóveis.

«A população faz lembrar figurantes. Tudo parece ensaiado. Não sei onde acaba a timidez e começa a formatação imposta pelo regime. Parece uma cidade parada no tempo, transportes públicos antigos, edifícios austeros, mas impressiona a limpeza extrema: não se vê um papel no chão sequer», diz Álvaro Leite.

Panorâmica de Pyongyang

Vem de longa data o gosto pela corrida deste comissário de bordo da TAP e triatleta federado. O interesse pela Coreia do Norte, o 99.º país que carimbou no passaporte, foi suscitado mais recentemente.

«Já tinha curiosidade pela Coreia do Norte e ela cresceu após uma conversa com o José Luís Peixoto, que escreveu um livro sobre a sua visita ao país. Cruzámo-nos numa viagem de avião para São Paulo em novembro do ano passado e ele começou-me a falar sobre o tema: um país em que o povo está proibido de usar calças de ganga, por serem símbolo do imperialismo ocidental, em que os cortes de cabelo estão regulamentados, em que toda a propriedade é do estado e há senhas de alimentação… Li o livro em dois dias e comecei a pensar seriamente em participar na Maratona de Pyongyang», começa por contar ao Maisfutebol este portuense de 45 anos, que vive em Gondomar.

Êxtase no Estádio Kim Il-Sung

A aventura começou no início deste ano e concretizou-se este mês. Álvaro Leite tratou da inscrição na agência de viagens chinesa. Pagou cerca de mil euros pelo pacote para inscrição na prova, com vistos, estadia e alimentação, seguros e viagem comboio (a verba dobra considerando as viagens para à China). Viajou para Seul, na Coreia do Sul, daí até Dandong, na fronteira da China com a Coreia do Norte, e aí começou a sua descoberta do país mais fechado no mundo:

O atleta junto com os guias norte-coreanos em Pyongyang

«Ao contrário de alguns atletas norte-americanos, que tiveram de ir de avião, eu e outros atletas estrangeiros pudemos escolher fazer a viagem de comboio. Na fronteira, fomos interrogados e revistados, como esperado. Livros de política ou economia eram proibidos, máquinas fotográficas e telemóveis vistoriados. Tal como aconteceria à saída (em que apagaram fotos consideradas sensíveis). Fomos alertados para não fazer perguntas delicadas aos guias. A partir daí, foram sete horas até Pyongyang. É um contraste enorme com a China. A paisagem muda de forma radical. As estradas secundárias são em terra, a agricultura é quase feudal: não se vê uma máquina nos campos. Parecia Portugal há 40 anos.»

À chegada a Pyongyang o controlo foi sempre apertado. «Não podíamos afastar-nos do perímetro do hotel para treinar. Estive os três dias sem telemóvel ou internet, a televisão só tinha o canal estatal coreano. Tudo aquilo era diferente e ao mesmo tempo incrível.»

O grande dia chegou domingo, 9 de abril.

42,195 quilómetros até à apoteose no Estádio Kim Il-Sung.

«A corrida não é muito rápida, faltam abastecimentos: só havia água e em determinado momento da corrida já nem isso. Porém, o mais impressionante foi entrar no estádio e ter 60 mil pessoas em delírio. Já corri em muitos sítios pelo mundo, mas esta é uma experiência única. Sentimo-nos como estrelas de futebol; todo o público em êxtase», conta o atleta, que teve outros dois portugueses a seu lado em prova – «um da Suíça e outro de Coimbra».

A prova foi vencida pelo norte-coreano Pak Chol (2h29m22); Álvaro Leite completou o percurso em 3 horas e 23 minutos. Ficou em 31.º lugar entre 240 que terminaram a prova (no total da maratona e provas mais curtas participaram 1200 atletas, cerca de 400 estrangeiros): «O tempo não era o mais importante. Durante o percurso parei para tirar fotos. Havia muita gente na rua, muita polícia também. Mas toda a atmosfera foi espantosa. Impressionou-me a cordialidade das pessoas. É um povo fantástico. Pediam para tirar fotos connosco, estendiam-nos os braços. O rosto de muitos deles ficou-me na memória. Temo por eles nesta escalada de tensão e ameaças de guerra.»

Próximo destino: Antártida

Álvaro Leite já correu em cenários tão icónicos como a Muralha da China, Machu Picchu, no deserto de Atacama ou no Polo Norte. Participou em provas do Iron Man. Entre todas as corridas que já fez guarda memórias de uma ultramaratona de 57 quilómetros, a 2 500 metros de altitude nos Himalaias: «Vivi algumas situações inesperadas nessa corrida: atravessei um rio cheio de sanguessugas. Numa aldeia remota do Nepal, após o terramoto que afetou o país, cruzei-me com um gripo de miúdos que ao saberem que era português começaram a perguntar-me pelo Cristiano Ronaldo…»

Depois da Coreia do Norte, a grande aventura que o comissário de bordo e triatleta quer viver aponta para sul: «Corri em seis continentes. Falta-me a Antártida. Mas o investimento para participar nessa ultramaratona é significativo: entre 10 a 15 mil euros.»

Outro projeto apaixona Álvaro Leite por estes dias. Bem mais perto de casa. «Recentemente, comecei a dar aulas de desporto a pessoas com deficiência mental no Centro Paroquial de Valbom. Fui convidado pelo padre da minha freguesia e aceitei de bom grado esse projeto. Das coisas que já fiz na vida esta é sem dúvida alguma uma das que me dá mais gosto.»