Dois galhos a fazer de baliza, uma bola de meia e pés descalços, que levantam poeira enquanto correm atrás dela. O futebol começou assim para Awer Mabil, no campo de refugiados de Kakuma, no Norte do Quénia, onde nasceu em 1995, um ano depois de a sua mãe e os seus três irmãos terem feito uma longa caminhada (desde a localidade Bor) até encontrarem ali refúgio da guerra no Sudão do Sul.

«O meu pai era soldado, lutava pela independência do país e morreu em combate, pouco tempo de a minha família fugir para Kakuma», começa por revelar o extremo de 22 anos que esta época chegou ao Paços de Ferreira por empréstimo dos dinamarqueses do Midtjylland.

«Em miúdo andava quilómetros para ver na TV o Manchester United»

Apesar da juventude, Mabil tem uma história de vida cheia, com muito por contar. Tudo começa naquele campo de refugiados criado pelas Nações Unidas em 1991. 26 anos depois vivem ali perto de 90 mil pessoas, que sobrevivem da ajuda humanitária, sem poderem voltar para o Sudão do Sul – depois da luta pela independência, alcançada em 2011, o novo país sucumbiu a uma guerra civil entre as etnias Dinka (de Mabil), no poder, e os rebeldes Nuer.

Campo de refugiados de Kakuma, no Quénia, junto à fronteira com o Sudão do Sul

«A vida no campo de refugiados é dura. Eu, a minha mãe e os meus irmãos [dois rapazes e uma menina, todos mais velhos] vivíamos numas cabanas feitas de barro, muito pequenas, talvez metade desta sala [menos de 10 metros quadrados]. Cada pessoa tem um cartão que dá direito a um quilo de arroz, um quilo de feijão, óleo… Tem de gerir esse cabaz para duas semanas. Mas pior do que isso é para uma criança não haver ali perspetivas de um futuro. No campo não podemos abrir a mente e sonhar; estamos confinados àquele espaço e dependentes das Nações Unidas», recorda Mabil, que até aos dez anos de idade viveu em Kakuma e que tem da bola a correr sobre a poeira de um descampado as melhores recordações da sua infância.

«Jogar à bola sem preocupações era o que nos permitia tirar da cabeça maus pensamentos. Em miúdo já adorava futebol; andava quilómetros até encontrar uma televisão no campo para ver os jogos do Manchester United. Também por isso tenho como ídolo o Cristiano Ronaldo. Admiro-o por ter vindo de onde veio e pela forma como superou os seus desafios. Saiu de casa ainda criança para triunfar no futebol e trabalhou no duro. Estive na Madeira recentemente [Marítimo-Paços, 1.ª jornada da Liga] e identifiquei-me ainda mais com a história dele», conta Mabil, que em 2005 foi viver com a família para Adelaide, na Austrália, graças a um visto humanitário.

«Tinha familiares lá e fomo-nos adaptando àquela diferença cultural. A minha mãe arranjou emprego, eu disse ao meu tio que queria ser futebolista e ele ajudou-me a procurar um clube. Integrei um programa estatal para jovens jogadores durante dois anos. Destaquei-me por ser rápido, habilidoso… Aos 16 anos comecei a treinar com o Adelaide United, da A-League [principal liga do futebol australiano] e jogava pelo Campbelltown, das divisões nacionais.

Do arranque na Austrália ao radar dinamarquês

No final de 2013 Mabil assinou pelo Adelaide United e começou a «concretizar o sonho de ser futebolista». Uma aventura que durou dois anos e teve boas memórias: «Lembro-me bem de um dos últimos jogos da época, em que precisávamos de vencer ou empatar e estávamos a perder. O treinador mandou-me lá para dentro e eu marquei o golo no último minuto com o estádio cheio. Toda a gente a celebrar! Foi um momento inesquecível.»

Em 2015, chegou a oportunidade de jogar na Europa através de uma proposta do Midtjylland.

Como o descobriram? «Eles têm um sistema informatizado de observação em que introduzem lá os dados e comparam o potencial de jogadores pelo mundo fora. Foi assim que eu apareci no radar deles. Os meus números sobressaíram e eles compraram o meu passe.»

Aceitar uma aventura sozinho do outro lado do mundo foi simples. Mais complexo foi superar as diferenças de um futebol que não era tanto de posse e de liberdade individual, como aquele que privilegiava por Josep Gombau, então técnico do Adelaide United, que durante seis anos comandou equipas jovens do Barcelona em La Masia, para adaptar-se ao futebol dinamarquês «mais tático e à procura de lances de bola parada».

«Não foi também fácil adaptar-me também ao país. Fui viver para lá sozinho, com 19 anos. Morava só, cozinhava para mim, até que conheci a minha namorada, que é dinamarquesa, e tudo mudou.» Mabil acabaria por ser emprestado na última época ao Efsberg, também da primeira divisão, onde teve mais oportunidades de jogar e nesta temporada foi cedido ao Paços de Ferreira.

«Cheguei a Portugal e pensei: “Isto é um bom país para viver”»

A mudança na carreira não era a mais expectável, mas pode ser explicada pela contratação pelos pacenses do defesa australiano Dylan McGowan, já que ambos têm o mesmo agente.

Mabil aceitou o desafio de bom grado, até porque considera o futebol português como «dos melhores do mundo»: «Procurei algumas coisas sobre o Paços na internet; vi que é um clube que gosta de apostar em jovens e não foi muito difícil ficar convencido. Cheguei cá e rapidamente notei que Portugal é semelhante a África na forma como as pessoas agem. Toda a gente diz olá; se te perderes, todos ajudam. Gosto desse espírito. Mal cheguei, pensei para mim: “Isto é um bom país para viver.”»

O jogador que tem dupla nacionalidade da Austrália e Sudão do Sul fez um golo nos onze jogos disputados até ao momento pelos «castores», mas destaca, pela negativa, naturalmente, a expulsão frente ao Vitória de Guimarães, na 4.ª jornada da Liga, por pisão a Jubal, num jogo em que saiu de campo a chorar após ver o cartão vermelho direto.

«Foi inexperiência da minha parte. Aprendi com isso. O jogador do Vitória estava a pontapear-me consecutivamente, irritei-me e pisei-o. O árbitro viu-me e fui punido. Devia ter sido mais inteligente. Os meus colegas aceitaram o meu pedido de desculpa no final. Felizmente, eles conseguiram não perder esse jogo (0-0). Falando de bons momentos: já marquei e já assisti, mas acredito que o melhor ainda está para vir», refere o jogador, que por cá é fã de Brahimi e que já encontrou diferenças entre Vasco Seabra e o seu sucessor no comando técnico do Paços, Petit: «O novo treinador tem um estilo de jogo mais agressivo e eu gosto. Ouvi dizer que ele como jogador era assim.»

«Os miúdos jogam descalços e eu tenho dez pares de chuteiras por época…»

Mabil está feliz em Portugal. Tanto que no final do empréstimo espera continuar por cá «para crescer como jogador».

Apesar de aos poucos triunfar no futebol profissional na Europa e de ter passaporte australiano ele não se esqueceu das origens. De tal forma que é um dos mentores da fundação Barefoot to Boots, que oferece chuteiras às crianças que ainda hoje em dia continuam a jogar descalças no campo de refugiados.

«Eu jogava descalço em miúdo. É daí que vem a ideia. Quando regressei ao campo pela primeira vez com o meu irmão, em 2014 (depois de nove anos na Austrália), pensei: “Os miúdos jogam descalços neste terreno e eu tenho cinco ou dez pares de chuteiras da Nike por época… Ora, se eu conseguir recolher as chuteiras dos outros jogadores talvez todos os miúdos daqui consigam ter calçado para jogar.” Foi assim que começou. Os meus colegas de equipa foram sensíveis à ideia, depois os das outras equipas juntaram-se… Temos alguns patrocinadores na Austrália que nos ajudam. Agora, vou ao campo uma ou duas vezes por ano; recolhemos chuteiras junto de equipas australianas e doamos a crianças. Com outros donativos que as pessoas fizeram doámos, por exemplo, duas incubadoras a um dos dois hospitais que há lá. Faltam equipamentos desses para bebés prematuros.»

Mabil Awer: queniano de nascimento, sudanês do sul de raízes e australiano de passaporte. Hoje, qual é o país que sente como seu? «Sou um cidadão do mundo. Talvez seja já um pouco português também», responde.

Na verdade, por mais mundo que conheça e conquiste, Mabil já provou que jamais deixará de ser acima de tudo aquele menino de Kakuma, que corria de pés descalços atrás de uma bola de meia e tentava acertar entre os dois galhos de uma baliza improvisada.