«Tragam-me um pedaço de madeira», pediu Jorge Bergoglio pouco após ter sido eleito Papa no Conclave de 2013. Entre os objetos pessoais que fez questão que lhe levassem de Buenos Aires para a sua nova morada, no Vaticano, Francisco fez este pedido estranho.

O pedaço de madeira não era, porém, a imagem de um santo ou qualquer outro artefacto religioso, mas sim uma parte da bancada do Gasómetro, antigo estádio do San Lorenzo de Almagro, expropriado em 1979 pela ditadura militar de Videla e demolido entre 1982 e 1983.

O «Papa» entre os adeptos do San Lorenzo

Foi naquele «santuário futebolístico» que o pequeno Jorge, então com 10 anos, acompanhou com o seu pai (antigo basquetebolista do San Lorenzo), a caminhada triunfal para o título argentino de 1946 do Ciclón, comandado em campo pelo trio Farro, Martino e Pontoni, que em 1947 espantou Portugal numa digressão em que goleou o FC Porto (9-4) e uma seleção de jogadores de Benfica, Sporting e Belenenses (10-4).

«Guardo na memória das mais belas recordações de infância aquela gloriosa época de 1946. Aquele golo de Pontoni!», disse Bergoglio, então já Francisco, quando recebeu no Vaticano uma comitiva do San Lorenzo, uma semana após a sua entronização como Papa.

Matias Lammens, presidente do San Lorenzo, levou ao Papa Francisco a taça do Torneio de Abertura de 2013 

Meses mais tarde, em dezembro de 2013, após a conquista do Torneio de Abertura do Campeonato Argentino, uma comitiva do clube liderada pelo presidente Matias Lammens levou a taça à presença do Papa; além disso, o San Lorenzo de Almagro usou a imagem do seu adepto mais famoso na camisola de jogo.

Sócio e adepto, guardador de relíquias como fotos do velho estádio e camisolas azulgrana, o líder da Igreja Católica torce desde menino pelo clube do bairro porteño de Boedo, criado pelo padre salesiano Lorenzo Massa e por um grupo de estudantes, que deixaram de jogar futebol na rua para passarem a jogar dentro do colégio, criando o próprio clube, em 1908.

Mágoa por não receber o Papa na própria casa

Aquando da sua ordenação, em 2013, Bergoglio inspirou a fundação do Club Deportivo Papa Francisco, que milita nos distritais de Buenos Aires.

As ligações do mais ilustre hincha do San Lorenzo ao futebol vão aprofundar-se um pouco mais nesta sua visita a Portugal.

Esta sexta-feira, pelas 17h30, depois de aterrar na base aérea de Monte Real, o sumo pontífice será transportado de helicóptero para e descerá no parque de estacionamento do rebatizado Estádio Papa Francisco (tal como aconteceu com Bento XVI em 2010), onde descerrará uma placa com a nova designação em sua homenagem do recinto municipal de 1 500 espectadores que serve de casa ao Centro Desportivo de Fátima.

«Para ser sincero, não sei se ele saberá que lhe atribuíram o nome do estádio; declara António Pereira, padre e presidente do clube, que ao Maisfutebol confessa a mágoa por não ter sido convidado para a receção:

É lamentável que ninguém do CD Fátima tenha sido convidado por parte da Câmara Municipal de Ourém. Temos mais de 300 crianças a jogar futebol e achávamos que eles mereciam receber o Santo Padre e fazer-lhe uma oferenda do nosso clube, nem que fosse só um cachecol.»

António Pereira está há 48 anos ligado ao Fátima: «Fui o primeiro padre a ser futebolista federado, em 1969. Fui ponta de lança aqui do clube (fundado em 1966). Era o “coxo” cá do sítio (risos)… Depois fui dirigente e levo oito anos como presidente», conta ao Maisfutebol o presidente, que além da celebração do centenário das Aparições no Santuário a 13 de maio, este sábado, antecipa também com alguma ansiedade o dia seguinte.

O cartão de sócio do San Lorenzo de Jorge Bergoglio

Domingo o Fátima entra em campo com esperanças legítimas de subir à II Liga. Para discutir a subida, a equipa tem de vencer o Louletano naquele «que é o último jogo da temporada e o primeiro do Estádio Papa Francisco» – e esperar uma derrota do Praiense ou um empate do Real, para pelo menos chegar ao play-off.

António Pereira desvaloriza a polémica levantada pelo Real, que envolve Abdulmouti Akaaki, por este ser investidor da SAD do Fátima e também da do Louletano, e salienta as qualidades deste homem de negócios saudita, natural de Meca, outro local sagrado: «Ele vem cá no domingo para assistir ao jogo. É uma pessoa cumpridora, séria, amiga… A relação dele com o nosso clube tem corrido muito bem.»

Abdulmouti Akaaki com o padre António Pereira na formalização da aquisição da SAD do Fátima

Jogando em Fátima, num estádio agora com o nome de Papa Francisco o clube conta com ajuda divina para este jogo decisivo?

Isso não sei… (risos) Queremos vencer para compensar com alegria o desgosto de não podermos receber o Papa no nosso estádio. Será a melhor resposta a quem nos excluiu. Mas uma coisa é certa: em duas ocasiões em que o Papa João Paulo II visitou Fátima, o clube subiu de divisão nesse ano…»

João Paulo II é o nome do antigo estádio do Fátima, a alguns quilómetros e mais próximo do centro da cidade. Ali jogam os iniciados, juvenis e juniores do CD Fátima.

Este não é, contudo, o único recinto em Portugal que tem o nome do antigo Papa: o Estádio João Paulo II, em Angra do Heroísmo, é o maior recinto da Ilha Terceira (tem capacidade para 7 000 espectadores) e a casa do Lusitânia. Em novembro de 2015, o estádio acolheu o jogo da Taça de Portugal entre o rival Angrense e o FC Porto num jogo de casa cheia (que os dragões venceram por 2-0).

Tal como Jorge Bergoglio, também Karol Wojtyla esteve ligado ao futebol e foi na juventude guarda-redes do KS Cracóvia. Uma memória sublinhada pela FIFA aquando da nota de pesar do seu falecimento, em 2005.

Dois Papas, dois devotos de futebol. A partir de hoje, cada um tem em Fátima um estádio com o seu nome.