Por: Daniel Dantas

O Football Manager (FM) é um jogo de simulação de gestão de futebol que, à semelhança do desporto rei, desperta paixões. Ganhou vida em 1992 sob a designação de Championship Manager (CM) e agora, no dia 10 de novembro, celebra o 13º aniversário do novo naming. Em conversa com o Maisfutebol, Bruno Gens Luís e Carlos Bessa, head researchers da equipa portuguesa, explicam o trabalho de bastidores e toda a coordenação inerente à exaustiva atividade que exercem.

4-3-3 em detrimento de um 4-4-2? Inversão de um triângulo a meio campo para conferir maior robustez ao invés de criatividade? Apontar à Liga dos Campeões ou à Liga Europa? Dada a multiplicidade de objetivos que podem ser traçados para uma temporada e a complexidade dos processos decisórios à mercê do estratega, é com alguma naturalidade que a definição do FM se torna pouco consensual. «Muito mais que um mero jogo, é algo que te acompanha para toda a vida, desde a juventude à maioridade. Há inúmeros exemplos de pessoas que começaram sentados numa cadeira à frente do computador, deram seguimento ao seu sonho e tornaram-se treinadores na vida real. Também já o definiram de uma forma engraçada: «o único jogo que te pode stressar, deixar enervado e extremamente feliz ao mesmo tempo». Por vezes, pensas que vais avançar no calendário e fazer apenas um jogo enquanto esperas pela hora de sair e, quando dás por ti, passaram duas épocas e tens alguém a gritar o teu nome ou 100 chamadas no smartphone. As mulheres não costumam gostar muito [risos]», começa por contar Bruno.

Bruno Gens Luís em Old Trafford

O primeiro contacto de ambos com o jogo desenvolvido pela Sports Interactive (SI), remonta aos tempos do velhinho Championship Manager e, numa fase posterior, os procedimentos tomados até ocuparem os respetivos cargos foram similares. «Como ávido jogador de CM e FM, fui notando a falta de qualidade da base de dados com o passar dos anos e os crescentes erros, além dos milhares de jogadores em falta. Então, numas férias, decidi escrever no fórum da SI todos os erros que encontrava na Primeira Liga. Durante cerca de um mês, o meu dia-a-dia foi acordar, publicar erros e dormir. No final desse mês juntei tudo num documento Word de 120 ou 130 páginas, que enviei diretamente à SI. De imediato, colocaram-me em contacto com o José Chieira, o coordenador do FM em Portugal naquela altura, que me integrou e colocou a coordenar todo o Campeonato Nacional de Seniores, atual Campeonato de Portugal. Os planteis tinham cerca de cinco a seis jogadores apenas e tive de criar quase tudo de raiz. Depois tornei-me researcher principal dos PALOP, onde, por exemplo, criei o Gelson Dala e o Ary Papel, a despontarem no 1.º de Agosto.

Por volta de Maio de 2015, o José Chieira convidou-me para ser um dos coordenadores, juntamente com o Carlos Bessa, e assim começou a aventura como Head Researcher. Na primeira base de dados que recebemos existiam cerca de 8200 jogadores. Três anos depois, existem agora cerca de 22.000 jogadores só em Portugal», afirma Bruno. «No terceiro ano de colaboração, em 2012, senti que algumas alterações que sugeri não estavam a ser replicadas no jogo. Pedi, então, para editar diretamente na base de dados e ser assistente dele [José Chieira]. Desde então, começou a entregar-me ficheiros e depositou confiança em mim. Ainda hoje lhe agradeço por isso», acrescentou Carlos.

Tal como o Bruno, Carlos é Head Researcher de Portugal e coordena uma vasta equipa de observadores virtuais, que tanto acompanham presencialmente clubes como visualizam encontros no conforto do lar e contribuem decisivamente para a construção de uma ampla base de dados. «Procuramos juntar uma equipa coesa, que nos ajude a criar uma base de dados extremamente apurada, por forma a retratar, o máximo possível, a realidade existente no futebol português. Queremos que quem controle uma equipa consiga sentir que os jogadores são, de facto, muito parecidos com aquilo que são na vida real. Não faz qualquer sentido um jogador extremamente rápido e poderoso fisicamente estar retratado de forma frágil ou mediana. Como desafio para a presente temporada, estamos a melhorar um pouco o campeonato regional, embora seja um pouco complicado devido à dimensão que tem.»

As tarefas desempenhadas por Bruno e Carlos são algo semelhantes, quer na liderança da base de dados, quer na gestão da equipa que os suporta. «As tarefas estão mais ou menos subdivididas. O Bruno trata de certos clubes da Primeira Liga e eu de outros, mas depois, a certa altura, trocamos de equipas. Ambos tratamos de atributos, atualizar planteis, transferências, inserir afiliações, atualizar o número de sócios… Os adeptos não têm noção da imensidão de trabalho que está por detrás da base de dados. Há campos na base de dados que servem para quase todas as informações: definirmos o mínimo e o máximo de assistência num estádio, a média durante uma época, o preço dos bilhetes, o número de sócios… No caso da Primeira Liga, tirando três exceções, que são equipas que confiamos a três colaboradores, tudo é tratado exclusivamente por mim e pelo Bruno, para que consigamos manter um nível enorme de fiabilidade. A partir da Segunda Liga, já damos mais confiança aos nossos assistentes para editarem as equipas que acompanham habitualmente. Como é lógico, não conseguimos chegar a todo o lado, nem ver todas as equipas disponíveis, daí ser tão importante termos o apoio de uma equipa. Se o jogo tem a qualidade que tem neste momento, é também graças aos assistentes de cada responsável de país. Têm um papel fulcral nesta base de dados e estamos muito gratos», descreve Carlos.

A coordenação é executada de forma atempada, no início de cada temporada, e abarca um conjunto de fases que terão de ser escrupulosamente cumpridas. Uns vão ficando pelo caminho. Outros permanecem firmes numa longa caminhada. «Temos uma página na qual se podem candidatar como assistente de pesquisa geral ou específico. Qualquer um, se tiver um bichinho pelo jogo, tem a possibilidade de colaborar connosco. Imaginemos uma pessoa que costume seguir atentamente o Estrela Vendas Novas ou o Aliança de Gandra. Se efetivamente acompanhar a equipa de forma consistente, pode candidatar-se a assistente de pesquisa específico. Depois, temos um grupo privado com fases definidas de acordo com as deadlines impostas pela Sports Interactive. Costumamos dar três a quatro semanas de trabalho aos nossos colaboradores, sensivelmente, e, chegando ao fim do prazo, entregam-nos os ficheiros e revemos.»

Na estrutura global de researching existe, logicamente, uma hierarquia, ainda que simplificada. «Primeiramente, existe o Head of Head Researching, que é o responsável de todos os responsáveis de cada país. Depois, existem os head researchers de cada país e, abaixo, existem os assistentes de pesquisa. Cabe-lhes a responsabilidade de auxiliar a base de dados de forma mais local. No que respeita a trabalho, o responsável de todos os países acaba por coordenar toda a equipa mundialmente envolvida, garantir que as dealines de entregas de base de dados são cumpridas e transmitir feedback. Por vezes, há jogadores que enviam feedbacks e reclamações para a própria Sports Interactive e cabe-lhe transmitir as informações que recebe.»

Num âmbito nacional, porém, à exceção dos coordenadores, não existem distinções entre o restante corpo colaborativo, embora haja uma diferenciação no tipo de tarefas a realizar. «Os researchers de clube acompanham um a três clubes, geralmente locais, e apenas se preocupam com essas equipas; os researchers gerais fazem trabalho de «fundo», isto é, todas as equipas que não tenham acompanhamento, essencialmente da distrital, são atualizadas por eles. Os jogadores não são avaliados, mas são-lhe atribuídos valores default para o nível da divisão, utilizando o historial, estatísticas, notícias e informações que nos chegam; por fim, os observadores vídeo. A função será novidade para o FM 2019. Já que conseguimos ter acesso aos vídeos dos jogos das diversas equipas do CP, e como há várias equipas sem acompanhamento, iremos recrutar researchers com as mesmas funções dos de clube, mas para assistirem aos jogos em vídeo, sem necessitarem de se deslocar aos campos», refere Bruno.

Atualmente, são cerca de meia centena os assistentes de pesquisa espalhados por todo o território nacional, apesar de o número ser sazonalmente variável. Por vezes, entre entradas e saídas, o número atinge os 100. E há também lugar para o sexo feminino: Catarina Faria integra a equipa e observa o Fátima, que milita na Série D do Campeonato de Portugal. «De forma consistente, por norma, andam à volta das 50 pessoas: do norte, centro, sul e ilhas. Sentimos, sinceramente, que existe paixão pelo FM, mesmo em zonas com menos densidade populacional», relata Carlos.

O modelo de pesquisa aplicado em território nacional é replicado noutros países. No entanto, cada responsável de país tem a oportunidade de coordenar autonomamente e a dimensão da equipa com a qual trabalha é altamente oscilante. «Temos conhecimento de responsáveis que não têm tantos assistentes de pesquisa. Apesar de isso existir, sentimos que é ingrato estar a circunscrever a base de dados apenas à opinião de duas pessoas. Preferimos abrir as portas às pessoas que nos queiram ajudar. Em termos de obtenção de informação, a base de dados nunca seria tão boa se fossemos tão salazaristas. Exemplificando, se fosse de Lisboa e pretendesse saber informações do Coimbrões, sabia que não seria tão fácil como se tivesse um scout lá. Ele tem acesso a informação muito mais rapidamente, consegue ver jogos mais facilmente e pode conhecer pessoas valiosas.»

Não há lugar para clubite: «Não queremos criar Tós Madeiras»

«No entanto, também sentimos alguns casos em que as pessoas levam o amor ao clube de uma forma que ultrapassa a clubite. Não queremos isso no jogo. Tivemos situações em que excluímos os assistentes de pesquisa, porque sentimos que não estavam a dar nenhuma ajuda. Não queríamos criar Tós Madeiras em versões equipas. Necessitamos, realmente, de um grande filtro e cuidado nos assistentes que trazemos, apesar de nunca inserirmos qualquer ajuda sem a rever primeiramente. Se tivermos 100 pessoas a colaborar connosco, revemos os 100 ficheiros que enviam. Posso garantir, com toda a certeza, que as 50 pessoas que temos consistentemente são imparciais.»

O processo de observação é extremamente abrangente e divide-se entre a Primeira e Segunda ligas, Campeonato de Portugal, distritais e Campeonato Nacional de Juniores. A primazia, porém, é dada aos dois principais escalões do futebol português. «No entanto, nunca descuramos as outras. Por vezes, adquirimos licenças, por um período temporário, do InStat ou do Wyscout: ferramentas de scouting que nos permitem descarregar jogos do Campeonato de Portugal, por exemplo. Dessa forma, conseguimos analisar os encontros que não tivemos oportunidade de assistir no estádio ou na televisão», prossegue Carlos.

Carlos Bessa

As horas dedicadas ao scouting são manifestamente inferiores aquando dos picos de edição. Durante esse período, a base de dados do jogo volta a assumir-se como prioridade. Preencher atributos técnicos e psicológicos do staff, transferir atletas ou atualizar a habilidade potencial de jogadores são apenas alguns exemplos de tarefas levadas a cabo pela equipa de pesquisa. «Em semanas de entrega de base de dados chego a estar, em média, 16 a 18 horas diárias a trabalhar na base de dados e no dia da entrega nem se dorme», revela Bruno.

«O tempo que perco acaba por não ser tempo perdido, porque estou a usufruir do tempo em que estou a trabalhar. Na fase que antecede o lançamento de um novo jogo existem cerca de sete deadlines que têm de ser cumpridas. Posso dizer que, uma semana antes de entregar a base de dados, saio do meu trabalho e acabo a trabalhar mais quatro, cinco ou seis horas por dia nisso. Acaba por ser quase outro trabalho full-time que temos. Logicamente, não conseguimos agradar a todos e todas as épocas é normal que haja pessoas que critiquem a base de dados. Nunca vamos conseguir ter opiniões consensuais, porque é futebol. Para mim e para o Bruno isto é um bebé que estamos a ajudar a crescer», admite Carlos.

Questionados sobre a possibilidade de o jogo distribuído pela SEGA constituir uma ferramenta importante para clubes ou agentes, Bruno e Carlos parecem concordar afirmativamente. «Podem tentar descredibilizar o jogo pelo simples facto de o ser, mas já foram a público diversas situações de jogadores que foram encontrados graças ao FM. Já tivemos o Roberto Firmino como exemplo. Há uns meses soube-se que tinha sido descoberto numa fase inicial da sua carreira através do jogo. Inclusivamente, tivemos uma situação que, infelizmente, não foi positiva e demonstrou um lapso. Falo do jogador que queriam convocar para a seleção da Bolívia, pelo facto de estar na base de dados do FM a nacionalidade boliviana. É um erro que pode acontecer a qualquer um, no entanto, isto leva a crer que realmente este jogo acaba por ser interpretado de forma mais séria por parte de certas entidades e clubes. Qualquer clube que compre o jogo obtém facilmente uma base de dados enormíssima, com milhares de jogadores e observação real. Portanto, por que razão é dada credibilidade a um WyScout ou InStat e não ao FM? Enquanto uns são remunerados para tal, nós fazemo-lo por amor».

«É um ótimo complemento. Não recomendo que seja utilizado como ferramenta exclusiva para contratar determinados jogadores, mas que o perfil destes provoque interesse nos clubes e, a partir daí, sintam a necessidade de observá-lo ao vivo e comprovar se a avaliação feita pelos observadores do jogo é realista. É necessário saber se a avaliação foi derivada de determinados contextos e como o jogador se comporta nos diferentes momentos do jogo, entre outras coisas essenciais que ainda são limitadas no jogo», afirma Bruno.

Para a edição 2018, Carlos desvendou algumas novidades: «Uma das principais chama-se Dynamics. Posso adiantar que será algo realmente inovador dentro do próprio jogo e que vai acrescentar, uma vez mais, realismo. O motor de jogo foi aprimorado, assim como o 3D e a base de dados. Existe uma série de novos cargos, também, como é caso do Data Analyst e do Academy Scout, para 2019. Relativamente a novidades com maior gabarito, teremos que aguardar mais uns dias. Não posso divulgar essas informações [risos]». O resto mantém-se em segredo, claro.

Curiosamente, na sequência do trabalho desenvolvido para o Football Manager, alguns ex-colaboradores da equipa de pesquisa portuguesa foram convidados para trabalhar em clubes profissionais. «Temos pessoas que estão em clubes da Primeira Liga e da Segunda Liga e esses convites surgiram após integrarem a equipa do FM. Sentir que, apesar de este ser um trabalho pro-bono, quem faz o que pode por fazer crescer esta base de dados colabora, numa fase posterior, com clubes profissionais, é uma das maiores recompensas que poderíamos ter», conta, com um sorriso de orelha a orelha.