* Enviado-especial do Maisfutebol aos Jogos Olímpicos
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Escuro, muito escuro. Noite cerrada, bruma. O pequeno bote agita as águas do Egeu, acalmadas pelo verão. 20 pessoas acotovelam-se. Espaço exíguo, preparado para quatro seres humanos, não mais.

O silêncio intimida quando, sem aviso, o motor pára. Ao longe, não mais de cinco milhas, a costa grega promete segurança, sobrevivência. Como chegar lá?

A pequena Yusra não pensa duas vezes. Atira-se ao mar e obriga a irmã, Sarah, a segui-la. ‘Temos de nadar e puxar o barco até à costa!’. A elas juntam-se mais duas mulheres, as únicas no esconso barco capazes de nadar.

Sofrem, respiram em dificuldades, salvam a vida a duas dezenas de refugiados. Incluindo a delas. Yusra e Sarah tocam o chão da ilha de Lesbos, deixando para trás uma epopeia soturna, arrepiante.

Salvação.

Menos de um ano depois, as irmãs Mardini terão de se separar por uns dias. Agora por uma boa razão. Sarah fica na Alemanha, o país que as acolheu, e Yusra ruma ao Rio de Janeiro, onde representará a mais especial das equipas: a representação olímpica de refugiados.

«Não me podia afogar naquele mar. Teria sido uma pena, pois sempre fui nadadora. Agora quero que todos os que foram obrigados a abandonar as suas casas tenham orgulho de mim», diz a pequena Yusra Mardini.

Na Síria: «Nadava na piscina e via o teto cheio de buracos»

O Maisfutebol envia cinco questões à menina síria, 18 anos apenas, através do Comité Olímpico Alemão. Pretendemos saber como era a vida de Yusra Mardini antes do eclodir do conflito no Médio Oriente.

«Vivia numa família da classe média, ia à escola e treinava muito. Até isso deixar de ser possível. Vários treinos foram cancelados por causa dos bombardeamentos. Lembro-me de estar dentro de água, na piscina, e ver o teto cheio de buracos», recorda Yusra.    

As irmãs Mardini fugiram de Damasco para sobreviver. Rumaram até Beirute, no Líbano, e de lá embarcaram para Izmir, Turquia. Separaram-se da família, de amigos, de uma vida estável e cheia de promessas.

Outros, porém, não tiveram tanta sorte e pereceram na capital síria. «Conheço muita gente que morreu nos bombardeamentos. Alguns deles atletas. Muitos futebolistas também», lamenta Yusra Mardini, fluente em Inglês e a melhorar todos os dias o Alemão.

«Da Turquia passei para a Grécia – na viagem em que salvou a vida a muitas pessoas – e do centro de refugiados fui colocada na Alemanha. Cheguei a Berlim em setembro de 2015», sublinha a prometedora nadadora.

Na Alemanha, Yusra integrou os treinos do Wasserfreunde Spandau 04, um dos clubes de natação de Berlim, e o programa olímpico para refugiados, recentemente criado pelo COI.

Os resultados superaram todas as expetativas e Yusra Mardini vai mesmo nadar no Rio de Janeiro, sob a bandeira dos anéis olímpicos.

«Dentro da piscina não sou uma refugiada síria. Sou uma nadadora, uso fato de banho, touca e tenho adversários. É só nisso que penso».

O futuro, sugere, passa pela Alemanha e pela aposta imediata na natação. A rezar pela paz na Síria e pelo regresso a casa. «Nem que seja quando for velhinha».