Comida em excesso. Vários pratos por refeição. Mesas fartas de doces tradicionais. De chocolates da época.

Porque «um dia não são dias», quem tem por hábito seguir religiosamente uma alimentação equilibrada não consegue, em muitos casos, resistir à tentação.

No desporto de alta competição, o desafio é maior. Porque qualquer quilo a mais, os alimentos errados ou nas proporções inadequadas podem fazer a diferença no rendimento de um atleta e até na prevenção de lesões.

«Não queremos que os jogadores se privem do convívio à mesa e da relação que têm com a família. Queremos que consigam aproveitar esses momentos com as famílias de forma livre, comendo sem o impedimento de alguma coisa, para que, depois, voltem à rotina mais saudável, com alimentação adequada e o treino», explica ao Maisfutebol Mafalda Silva, do departamento de nutrição do Sporting, para quem esta altura do ano é particularmente desafiante.

Mafalda Silva é nutricionista no Sporting desde 2017

Se na equipa principal do Sporting a paragem competitiva não existiu e foi dada, no máximo, uma folga de três dias – 24, 25 e 26 de dezembro – no futebol de formação a pausa rondou as duas semanas e abrangeu o Natal e a passagem de ano. Foi o mais longo período de inatividade da época desportiva e o segundo do ano, apenas atrás do verão.

E o trabalho do departamento de nutrição dos leões é fundamental para que ninguém regresse fora de forma. «Nos períodos de paragem criamos um documento geral com linhas orientadoras que devem ser seguidas, especialmente no off-season, que é um período um bocadinho maior. Nalguns casos mais particulares – porque requerem uma maior preocupação ou porque os próprios jogadores também manifestam esse interesse – tentamos garantir um acompanhamento permanente. Como o fazemos à distância? Através do Whatsapp, por onde fazemos chegar documentos que consideramos importantes e por onde os jogadores podem enviar-nos fotografias da comida e tirar dúvidas: qual é o melhor prato, se a quantidade é adequada ou se podem acrescentar alguma coisa. Muitos dos jogadores já têm essa preocupação», conta Catarina Custódio, um dos cinco elementos do departamento de nutrição do futebol do Sporting, um dos alicerces da Unidade de Performance, criada já na presidência de Frederico Varandas.

Avaliados no regresso

O regresso, logo após o Ano Novo, aos treinos das equipas dos escalões de formação foi acompanhado por avaliações individuais que permitiram perceber se os normais abusos da época tiveram consequências no estado de forma dos atletas. «São avaliações de composição corporal. Fazemos a pesagem, temos a altura, mas o que fazemos de forma mais periódica é a avaliação de pregas cutâneas para conseguirmos perceber a gordura. Fazemos o somatório de todas as pregas e atingimos um determinado valor de gordura. Dessa forma, e através da medição de perímetros, conseguimos perceber a quantidade de massa muscular», explica Catarina Custódio, que trabalha no Sporting há mais de dois anos.

Mafalda Silva salienta a importância da sensibilização dos jogadores, logo desde jovens, para a importância de uma alimentação equilibrada em competição e fora dela. «Não queremos castigar ninguém, mas sim educar e fazer com que eles saibam que têm de ter alguns cuidados nas férias para que não arruínem a composição corporal durante esse tempo e regressem na melhor condição física possível, porque se assim for será mais fácil readquirirem os valores normais e iniciarem a competição na melhor condição física possível.»

Sensibilizar jogadores e famílias

Essa sensibilização é feita através do contacto diário, com disponibilidade permanente para esclarecimento de dúvidas de forma presencial ou por outros meios e até através da presença de pelo menos um elemento do departamento de nutrição no momento em que as refeições são servidas aos jogadores no refeitório da academia.

Mas não só. Ao longo da época são feitas várias sessões de formação, adequadas aos diferentes escalões. «Cada equipa tem quatro sessões de formação por época. Vamos abordando vários temas mais pertinentes para cada período e também de forma evolutiva. Para que aprendam, ao longo dos escalões, cada vez mais sobre a alimentação em vários temas», refere Mafalda Silva.

As famílias dos jovens atletas também não ficam de fora, até porque é aí, em casa, que deve estar a base de uma boa alimentação. «Muitas vezes identificamos nos mais jovens hábitos alimentares que não são os mais adequados e tentamos ajustar. (...) Sabemos que o ambiente envolvente acaba por ser muito importante para os hábitos alimentares. Se conseguirmos motivar uma família a ter uma melhor alimentação, sabemos que os nossos jogadores vão, consequentemente, ter uma melhor alimentação. Por isso, temos formações com os pais e as consultas para os mais jovens também são feitas sempre com a presença dos encarregados de educação, que também podem tirar dúvidas connosco por Whatsapp. É muito importante nessas idades», atesta Catarina Custódio.

Catarina Custódio, nutricionista no Sporting. «Se conseguirmos motivar uma família a ter uma melhor alimentação, sabemos que os nossos jogadores vão, consequentemente, ter uma melhor alimentação»

Uma área cada vez mais central no alto rendimento

Mafalda Silva chegou ao Sporting em 2017. Desde então assistiu ao crescimento do departamento de nutrição e à integração desta área na Unidade de Performance, que agrega, também, a medicina, a fisioterapia e as ciências do desporto, que funcionam como um todo. «Nos meus primeiros tempos cá, a nutrição, como acontece em muitos outros clubes, só existia na equipa A. Havia algumas recomendações dadas pelo médico e pelo nutricionista que acompanhava a equipa A, mas a estrutura da formação não conhecia a nutrição, basicamente», retrata.

António Pedro Mendes vai mais longe. «Quando eu aqui cheguei, em junho de 2021, fiquei impressionado com o que a Mafalda fazia sozinha. Era um ‘one woman show’», certifica o responsável máximo pelo departamento de nutrição dos leões, que abrange jovens desde os oito anos até ao futebol sénior.

Mafalda nem consegue especificar quantos jogadores acompanhava. Números arredondados: perto de 300. Não conseguia fazer planos individualizados para todos e era necessário estabelecer prioridades. «Mas tinha de avaliar todos para identificar isso. Agora é possível fazer avaliações muito mais regulares, precisas e dar um acompanhamento muito mais personalizado aos jogadores.»

«Tivemos uma reformulação grande do departamento há dois anos e meio. Em 2021, o clube todo tinha três nutricionista e agora tem dez a 11: cinco no futebol e outros tantos nas modalidades. Mais do que triplicámos o número de recursos humanos na área da nutrição, porque fomos sentindo essa necessidade», diz António Pedro Mendes.

No Sporting desde 2021, António Pedro Mendes é o responsável pelo departamento de nutrição

Pela primeira vez, este ano a equipa principal feminina do Sporting passou a ter um nutricionista dedicado em exclusivo a ela.

Um claro reconhecimento da importância desta área para o sucesso, que passa não só por ganhar, mas por, no futebol de formação, crescer bem e de forma saudável.

«Sentimos cada vez mais que temos uma importância bastante grande e somos procurados não só pelos jogadores, mas também pelos treinadores, que procuram a nossa ajuda, algo que antes não acontecia», sublinha Mafalda Silva. «A nutrição ajuda os jogadores a atingirem um melhor rendimento nos treinos e nos jogos e sabemos também que os ajuda a recuperar melhor e a prevenir lesões. No fundo, se ajudarmos a criar estes bons hábitos alimentares num jogador, sabemos que ele vai conseguir, além de saúde, obter bons resultados durante a sua carreira», remata.

Mais do que comer bem e tirar rendimento desportivo...

O plano do departamento de nutrição do Sporting não se resume àquilo que os jogadores comem, desde alimentos convencionais a suplementos, introduzidos apenas a partir dos 16/17 anos. Há também uma preocupação social e de respeito pelos alimentos.

Por exemplo, as sobras do refeitório da academia são sempre encaminhadas para a Refood de Alcochete, que distribui os alimentos pelos mais carenciados, por vezes com o envolvimento dos próprios jovens jogadores, treinadores e restante staff. «Através desta colaboração, pretendemos também sensibilizar os jogadores para que deem mais importância à comida e que evitem o desperdício alimentar. Ajudando a construir os cabazes para as famílias e a distribuir as sobras por famílias carenciadas, tendo contacto com elas, os jogadores ficam com maior sensibilização sobre a importância que devem dar à alimentação», explica Mafalda Silva, responsável pela ideia.

António Pedro Mendes acrescenta que a participação nessa iniciativa é uma das muitas atividades de um projeto que está a ser idealizado. «É um projeto grande e que tem como objetivo sensibilizar para a sustentabilidade e que passa, entre outras coisas, pela criação de uma horta que possa integrar toda a comunidade Sporting, incluindo os próprios jogadores. Fará parte do plano educativo deles envolverem-se no cultivo. Acima de tudo, para respeitarem mais os alimentos, porque às vezes pode dar a sensação de que eles aparecem do nada, mas é preciso que percebam este ciclo para que a sustentabilidade também lhes faça sentido depois», conclui.

* (FOTO DE CAPA) Da esquerda para a direita: Mafalda Silva, Luís Fonseca, António Pedro Mendes, Pedro Mendes e Catarina Custódio, os cinco elementos do departamento de nutrição do futebol do Sporting