* Enviado-especial do Maisfutebol aos Jogos Olímpicos
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A música ecoa numa coluna, agressiva. É electronic rock, Linkin Park, porque Rui Bragança assim quer.

«Normalmente ponho uma pop agradável, melodiosa. Mas hoje foi o Rui a escolher e é isto. Ele gosta».

Hugo Serrão, treinador e confidente há 11 anos, justifica a atmosfera dentro da sala. 70 metros quadrados. E nunca larga o cronómetro. «Tenho mais uns segundos para falar consigo antes da próxima série de exercícios. Pergunte-me o que quiser».

Atrás, banhado em suor, impaciente, Rui já grita. «Hugo, olha o tempo, olha o tempo!»

É um animal competitivo. Nos 90 minutos em que o MaisFutebol pisa o dojang (nome do tapete do taekwondo), o menino de 24 anos, candidato a uma medalha nos Rio2016, impressiona.

Rui só sabe treinar com máxima intensidade

Pontapeia, grita, motiva os colegas. E arranca mais uma série de pontapés. Perna esquerda, perna direita, dez repetições, uma violência.

«Fazemos 12 treinos por semana, cada treino demora uma hora e meia», explica Hugo Serrão, ele próprio um antigo praticante da modalidade. «Fui quinto classificado num Europeu. O meu palmarés não é grande coisa». Modesto.

O jornalista está descalço, a pedido de Rui Bragança. Atento aos pormenores, apesar de concentrado nos movimentos técnicos. «Não se importa? Tem de ficar em meias».

Colete eletrónico – onde se registam os locais de impacto e a pontuação -, calções, luvas nas mãos e nos pés. Hugo Serrão volta a conversar connosco, excelente comunicador, disposto a analisar cada detalhe do instruendo.

A medo, o repórter sugere «a perfeição da morfologia do Rui Bragança» para o taekwondo. Alto, bastante magro, extremamente ágil.

«Já foi melhor», reage o treinador. «Há uns anos era o mais alto de todos. No Rio de Janeiro, dos 15 adversários só três são mais baixos do que ele».

Rui Bragança mede 1,80 metros e compete na categoria de -58kgs. O objetivo de Hugo Serrão é deixá-lo «muito forte, pesando o menos possível».

A criatividade será uma das armas a aplicar. «Surpreender, sim, teremos de surpreender. Ele é canhoto, mas tem de ser forte com as duas pernas. Tem de ser inteligente e feliz. O cérebro tem de acompanhar o corpo», justifica o técnico.

Quando o gelo vinha de uma peixaria (atrás de uma mentira)

Bicampeão europeu, dominador do circuito nacional, Rui Bragança chega ao Brasil carregado de ambição. Lógica, compreensível. Há oito anos não era assim. Os resultados oscilavam de forma preocupante.

Uma toalha ajudou a resolver tudo. «O rendimento era irregular. Ou era porque comia mal, ou porque dormia mal. No estrangeiro ficávamos em hostels e o Rui não descansava bem», confessa Hugo Serrão.

«Começou a colocar tampões nos ouvidos, mas a claridade também não o deixava dormir. É muito sensível à luz. Bem, decidiu passar a dormir de toalha enrolada na cabeça. Em todo o lado. Fisicamente tudo melhorou».

Para grandes males, pequenos truques. Acaba o treino. Tarde, quase dez da noite. E o jantar? «Os pais do João [colega de equipa] hoje convidam-me», responde Rui Bragança, exausto. «Exausto não, hoje estou morto».

No balneário, a disciplina é trocada pelas gargalhadas. Contam-se piadas, mandam-se bocas inofensivas. Rui faz crioterapia. O termo é científico - «chique», diz o nosso campeão -, mas na prática passa por mergulhar o corpo numa banheira de gelo.

Hugo Serrão segue-nos vestiário adentro. «Nem sempre foi fácil arranjar este gelo todo», começa a contar.

«Antes de entrarmos no programa olímpico, o dinheiro era escasso. Tínhamos de ir a uma peixaria da zona e passávamo-nos por atletas de outro clube. Tivemos de utilizar essa artimanha para dar ao Rui e aos colegas o que eles necessitavam».

Agora, garantem todos, o gelo é legal. «Completamente legal».

Despedidas, desejos de boa sorte, o Rio de Janeiro espera por todos. Rui, um conversador de excelência, recebe beijinhos e abraços de antigos colegas das aulas de dança.

«Aulas de dança?»

«Sim, é verdade. Andei uns tempos com eles, mas tive de parar. Não há tempo. Medicina, taekwondo, família, namorada…»

Vamos jantar. São quase 23 horas e os pais do João estão à espera. «Amanhã é outro dia destes, caótico: acordar cedo, treinar, ir para o hospital, comer, estar no centro de saúde, treinar mais e jantar tarde».

Esta devoção merece uma medalha, Rui.