Há histórias que as crianças jamais esquecerão.

As histórias de encantar, claro. Mas também histórias de horror.

Ainda para mais, quando são histórias de horror contadas pelos familiares mais próximos. Na primeira pessoa.

E Pawel Kieszek não esquece o «milagre» que salvou a avó materna, quando ela era uma menina de apenas nove anos.

É impossível esquecer aqueles dias da ocupação nazi da Polónia durante a II Guerra Mundial.

«Nós somos de Varsóvia, onde os soldados alemães mataram muita gente. E a minha avó teve muita sorte. Havia pelotões de fuzilamento em que as pessoas eram encostadas à parede e os soldados disparavam para matar. Dez ou quinze, depois mais dez ou quinze e mais dez ou quinze. A minha avó esteve encostada a uma parede dessas para ser fuzilada. Ela já só esperava morrer. Mas foi salva porque um soldado deixou-a sair da parede. Por segundos, não morreu», relata.

«A minha avó tinha só nove anos. Teve muita sorte. Se ela não tivesse sobrevivido eu não estava aqui», reforça.

O relato cru de Kieszek é desarmante.

E é trazido aqui porque o guarda-redes polaco que jogou 10 anos em Portugal, e que no início desta época trocou o Rio Ave pelo Wisla Cracóvia, sente que a história se está a repetir.

É verdade que o território invadido agora é a Ucrânia. Mas devido à proximidade geográfica, a Polónia tornou-se no primeiro abrigo de milhões de refugiados que fogem da Ucrânia. Quase todos mulheres e crianças.

E a cidade de Cracóvia, onde o atleta de 37 anos joga agora, é a porta de entrada para muitas dessas pessoas que dali seguem para vários destinos na Europa. Tal como a avó de Pawel, que na década de 30 teve de fugir de Varsóvia para sobreviver.

«Nota-se que há muito mais gente da Ucrânia na cidade e carros com a matrícula ucraniana. Mais de 2 milhões de pessoas já passaram por Cracóvia. E muitos ficaram», introduz em conversa telefónica com o Maisfutebol.

 

«Os polacos ajudam muito, não esquecem o que viveram há 80 anos»

O guarda-redes que em Portugal representou o Sp. Braga, V. Setúbal, FC Porto, Estoril e Rio Ave admite que as mudanças que se notam em Cracóvia não interferem com o dia-a-dia dos futebolistas.

Ainda assim, é impossível ignorar a realidade que os rodeia.

«Na estação de comboios é onde se nota mais a presença de refugiados. Há uns dias fui a Varsóvia de comboio e há mesmo muita gente na estação», descreve.

«Não é um cenário horrível, porque os polacos estão a ajudar em tudo o que podem, mas já se vê muita gente sem-abrigo», lamenta.

A solidariedade polaca – já descrita também por Luís Rocha ao nosso jornal – é algo que para Kieszek é muito fácil de explicar.

Tal como ele guarda o episódio da avó na memória, quase todos os polacos conhecem histórias semelhantes ou ainda mais trágicas vividas durante a II Guerra Mundial.

«Nós sabemos bem aquilo que sentem as pessoas que estão a viver esta situação. Na Polónia, ainda ninguém se esqueceu do que se passou há 80 anos», admite o guardião.

«As pessoas têm dado roupa, comida e o máximo possível. Vê-se que cada pessoa da Polónia quer ajudar como pode», acrescenta.

«Estamos preocupados, isto está a acontecer aqui tão perto»

No próprio clube que representa, além de um fisioterapeuta que foi para junto da fronteira ajudar quem chega e transportar algumas pessoas para Cracóvia, os jogadores contribuíram para ajudar quem ficou com a vida em suspenso na Ucrânia e não sabe se não vai perder tudo.

«Demos pequenos donativos para ajudar os refugiados», nota, não escondendo a preocupação com o cenário a que assiste.

«Estou muito preocupado, estamos todos. Isto está a acontecer aqui tão perto. Todos os dias vemos o que se está a passar e estamos apreensivos. Acho que é muito mais fácil estar em Portugal, Espanha ou Itália, que fica mais longe», defende.

De resto, Pawel Kieszek revela ter estado em contacto com um antigo companheiro no Rio Ave, Nelson Monte, que teve de fugir da Ucrânia depois de ter sido apanhado no meio de uma guerra que surpreendeu toda a gente e que custa a acreditar que se tenha tornado realidade.

«Ninguém esperava esta guerra, ou que isto pudesse acontecer outra vez. Não é normal que uma ou duas pessoas decidam começar uma guerra. Como é possível vermos todos os dias tantas pessoas a morrerem pela simples vontade de uma ou duas pessoas?», questiona.

A história repete-se.

A frase que ouvimos tantas vezes nunca deixa de se confirmar.

E com isto, novos traumas estão a nascer. Milhões de crianças ucranianas estão a viver cenários semelhantes aos vividos pela geração da avó de Kieszek.

Histórias na primeira pessoa. Daquelas que nenhuma criança consegue esquecer.