O futebol está cheio de violência verbal e expressões de ódio. Desde pais a adeptos, passando por jogadores, treinadores a dirigentes. Não há contenção verbal no campo, nas bancadas e, tão à maneira moderna, nas televisões e nas redes sociais.

Não é novidade e nem sequer é um tema novo, mas tem aumentado e foi o tema de uma conferência intitulada ‘A violência verbal no desporto’ organizada pelo ISCTE na semana passada. Aumenta temporada após temporada e à medida que a exposição é maior e em que tudo está, sobretudo, à distância de um clique.

As causas são muitas, desde logo porque o desporto, nomeadamente o futebol, «é paixão». Sendo paixão, altera-nos e «desperta reações terríveis nas pessoas, cega-as», como referiu o ex-árbitro Duarte Gomes nessa palestra.

Mas não só. Há «falta de cultura desportiva» e de desportivismo em Portugal. A opinião é de António Simões, ex-jogador do Benfica, que esteve no mesmo colóquio, abordando o tema e manifestando-se desapontado com esta realidade.

A comunicação social também tem culpa, dá acesso e azo a manifestações que antes não tinham espaço público. Com tudo isso, a verdade é que hoje em dia as fronteiras ultrapassam-se com demasiada frequência.

Vivemos numa era e numa sociedade em que há uma reação imediata de insulto. «Palhaços joguem à bola» ou «filho da p***, és um filho da p***» são, infelizmente, frases que já nos habituámos a ouvir nos estádios de Norte a Sul, num tom que se estende aos cafés e às redes sociais. Opiniões tantas vezes exageradas e tantas vezes sem sentido.

«As pessoas são incapazes de separar as emoções do racional e pensam muito pelo clube por que torcem. Isso leva à falta de fair-play e leva depois a insultos pessoais que não fazem sentido nenhum», diz o psicólogo de desporto Jorge Silvério, com quem o Maisfutebol tentou perceber mais sobre o tema.

«Ler, ouvir e dar o devido desconto»

Não há obviamente uma explicação lógica ou, melhor, uma verdade absoluta. Jorge Silvério apoia-se na divulgação mais massiva de algumas situações e da influência que a comunicação social também tem.

«Muitas das vezes damos muita importância às coisas negativas e andamos a falar delas muito tempo, não falamos tanto das coisas positivas», justificou, para explicar: «Não diria que há um clima generalizado de violência verbal, mas às vezes, de facto, as pessoas excedem-se em alguns comentários fruto das emoções.»

«Como na era dos romanos havia o pão, vinho e circo, nós atualmente precisamos do circo, que acaba por ser o nosso futebol. Isso às vezes serve para as pessoas se libertarem das frustrações do dia a dia e por isso, muitas da vezes, quando se exprimem ultrapassam os limites», defendeu o especialista.

As consequências podem ser graves para o recetor, mas o conselho é sempre o mesmo: «Ler, ouvir e dar o devido desconto. A maior parte das pessoas expressa-se sem conhecimento e muitas vezes por ressentimento. Hoje em dia as pessoas têm uma necessidade muito grande de expressar as suas opiniões e quem as ouve ou lê tem de perceber isso e saber isolar opiniões».

No entanto, é inegável que por vezes é difícil controlar e não fazer caso. «Há pessoas que ficam afetadas com esses comentários e com isso limitam o rendimento desportivo. Sobretudo jogadores com menos experiência, que não estão habituados a estes fenómenos e que por isso são mais facilmente influenciáveis», referiu Jorge Silvério.

Contudo, o psicólogo defende que «embora às vezes haja a intenção de provocar determinada reação, na maior parte das vezes esses comportamentos não são planeados». «São fruto das emoções e não têm intenções. Às vezes nem pensados são. Hoje em dia as pessoas têm muita liberdade de expressão, o que é ótimo, se for bem aproveitada», sublinhou.

Saber ver o lado positivo de algo que é negativo

Há poucos dias Éder manifestou-se desagradado com os assobios à sua falta de eficácia e ao golo marcado na final do Europeu. Acontece com o internacional português, mas sabemos que não é caso único. É recorrente. Muitas das vezes até ultrapassando todos os limites e sendo-se racista e xenófobo. Na era das redes sociais vemos isso quase a cada publicação dos jogadores: há os que expressam amor, outros ódio.

«No caso do Éder, o que ele tem de pensar é ‘estão a assobiar-me porque marquei um golo e os derrotei’, Por isso tem de ver as coisas pelo lado positivo. Se não tivesse decidido o Campeonato da Europa não o assobiavam. Temos de saber ver por ambos os lados», justificou Jorge Silvério, pegando num bom exemplo de como lidar com essas manifestações: «O Ronaldo é assobiado e criticado em todo o lado e ele próprio diz que precisa dessas manifestações para melhorar o seu rendimento.»

Dirigentes também influenciam

António Simões, que deu como exemplo da falta de desportivismo e de bons exemplos uns jovens vizinhos que sempre que o «seu» Benfica sofre um golo quase deitam o prédio abaixo, consegue perceber algumas situações, mas considera que o tema tem ganho outras dimensões e que até «os presidentes treinam os adeptos para eles se portarem mal».

Neste ponto, Jorge Silvério também consegue concordar, mas prefere sublinhar a realidade que melhor conhece, uma vez que também é Coordenador dos Oficiais de Ligação aos Adeptos da FPF: «Pode ter existido uma tentativa desse género num ou noutro caso, mas acho que já não acontece tanto. É muito difícil atualmente os adeptos e sobretudo os grupos organizados serem instrumentalizados.»

«Nos casos em que os dirigentes dizem o que acham, às vezes para influenciar opiniões, aquilo que as pessoas têm de fazer é ter massa crítica. Não temos de concordar com tudo e podemos ter voz própria em relação a isso», justificou, admitindo que «alguns adeptos funcionam ao estímulo dado pelos dirigentes e que acham que o que os presidentes dizem tem de ser lei».

Mas a culpa não é apenas destes agentes desportivos, está nas próprias pessoas: «Não é fácil manter a racionalidade quando o desporto nos coloca tantas emoções. Há falta de desportivismo e cultura desportiva. Temos muita tendência ao clubismo. As pessoas são incapazes de pensar racionalmente. Temos essa falta de cultura.»

Falta de cultura e de consequências

Nas redes sociais, em que os adeptos insultam os jogadores por falharem numa situação do jogo, por a equipa perder ou por mudarem de clube, tudo se torna mais livre, mas o mesmo acontece com os agentes desportivos e em lugares de destaque.

A falta de punição, ajuda. «As penas curtas são para serem suspensas. A primeira vez suspende-se, à segunda logo se vê? Isso é um erro. É uma ideia simpática, mas é um erro. Os tribunais são capazes de punir quem furta cinco litros de leite, mas quando alguém vê retirada a sua honra e lesada a reputação os tribunais não consideram grave », disse o advogado Rogério Alves, na sua intervenção no ISCTE.

Duarte Gomes é da mesma opinião e, no que à arbitragem diz respeito, referiu ainda que se «dá liberdade e nunca punição rigorosa, como acontece em Inglaterra por exemplo». Assim, o ex-juiz considera que em «Portugal há quase um incentivo» para se falar mal e criticar.

«As novas tecnologias vão ajudar o árbitro a tomar decisões melhores, mas serão apenas uma ferramenta de apoio. Nos campeonatos regionais e nos campeonatos jovens a violência é quase semanal. Há insultos verbais, violência a vários níveis entre adeptos e para com treinadores, jogadores e árbitros que são quase semanais. Não haverá tecnologia nenhuma que salve uma questão que é de base, que tem a ver com a formação das pessoas», acrescentou o árbitro.

Infelizmente os pais nem sempre são bom exemplo

No mesmo colóquio do ISCTE, o ex-presidente da Associação de Futebol de Setúbal, Sousa Marques, falou também de um episódio lamentável que aconteceu há uns anos num jogo da formação desta AF: um pai que levou uma arma para um jogo para ameaçar o treinador.

O caso, pelo menos em Portugal, felizmente, é isolado, mas demonstra que a pressão e ultrapassagem dos limites vem de onde menos se espera. «Às vezes, os pais são piores do que os adeptos, não só para os treinadores e jogadores, mas até para os seus educandos», disse o dirigente.

Jorge Silvério concorda, até porque conhece a realidade e está habituado a ouvir jovens jogadores. Não é desconhecido que muitas das vezes os pais reclamam desde as bancadas, exigem que os filhos joguem, insultam os adversários - da mesma idade dos seus filhos - e não poupam o treinador.

«É normal que os pais achem que os seus filhos são melhores do que os outros, mas ao expressarem-se nesses termos e ao intervirem limitam-nos. Tenho muitos jovens atletas que me dizem que preferem que os pais não vão ver os jogos. Muitas das vezes a pressão dos pais é tanta que faz com que eles não consigam atingir o potencial desportivo que têm», disse, lamentando: «Isso acontece muito, infelizmente.»