* Enviado-especial do Maisfutebol aos Jogos Olímpicos
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Rui Bragança nasceu em Guimarães, no ano da graça de 1991, 26 de dezembro. Ainda a família digeria a Consoada da véspera e já a mãe, Maria Luísa, corria para o Hospital Nossa Senhora da Oliveira. Rui foi um bebé apressado, pleno de vida desde o primeiro choro.

O mais velho de dois filhos, Rui Pedro Rebelo Bragança herdou do pai, José Manuel, a paixão pelo desporto. Apaixonado pelo voleibol e praticante federado épocas a fio, o progenitor ainda se aventura nos trilhos de BTT e aplaude a paixão de Rui pelo taekwondo.

Não fosse o apoio inequívoco da família, aliás, e talvez Rui não estivesse agora a preparar os combates da sua vida: a 17 de agosto, no Rio de Janeiro, o português de 24 anos é um dos maiores candidatos ao pódio olímpico.

Taekwondo. Arte marcial originária da Coreia do Sul, o alvo da predileção de Rui Bragança. Que não o primeiro. Aos seis anos experimentou o karaté. «Demasiado cedo». A natação veio logo a seguir. Rui era bom, prometedor e passou rapidamente à competição.

A alergia ao cloro travou-lhe os sonhos dentro de água. Obrigou-o a procurar uma nova obsessão. E esta surgiu «quase por acaso». Numa ida com os pais ao ginásio.

Em entrevista exclusiva ao Maisfutebol, Rui Bragança desabafa o amor pela modalidade que veste todos os dias e conduz-nos pelos labirintos do curso de Medicina. Sim, o Rui é bom filho, bom atleta e excelente aluno. Sempre foi, de resto.

Frequenta o sexto ano, passa por hospitais e centros de saúde, divide – de forma desequilibrada – o seu dia pelo estetoscópio e o dojang.

No final de mais um treino, esgotado, Rui Bragança responde ao nosso jornal com a maturidade de um ancião. Um bicampeão europeu com a cabeça no lugar certo.

De que forma define o taekwondo?
«Para mim é xadrez misturado com esgrima. Na esgrima usam o sabre e no taekwondo usamos as pernas. Depois há toda a parte estratégica, muito semelhante à do xadrez. Quem está de fora, e não conhece a modalidade, só vê pontapés e não percebe nada. Se os dois atletas pontapearem ao mesmo tempo, há um choque e ninguém pontua. É um desporto muito tático e exigente do ponto de vista físico. São seis minutos num espaço pequeno, muito desgastante».

Como e quando se apaixonou pelo taekwondo?
«Eu nem gostei das primeiras aulas (risos). Tinha 13 anos e fui com os meus pais para o ginásio. Olhei, vi, experimentei. Fiz um mês completo à experiência, por sugestão do meu pai, e fui gostando cada vez mais. Passei a fazer joguinhos, pequenos combates e fui conquistado. Eramos só três atletas, treinávamos com as crianças e adultos. As coisas foram evoluindo, nunca foi do género ‘quero ser muito bom nisto e chegar a campeão do mundo’».

Então, a relação com a modalidade surgiu por acaso?
«Sem dúvida. Por acaso e pelos filmes do Jackie Chan, Chuck Norris e Steven Seagal (risos)».

Nunca teve paixão por outro desporto?
«Por acaso até andei no karaté, que nada tem a ver com o taekwondo, com seis anos. Os treinos eram à noite, eu era muito novo, os meus colegas eram bastante mais velhos, descansava pouco. Não dava para continuar. Por isso fui para a natação. Adorava aquilo, mas uma alergia ao cloro obrigou-me a desistir».

Quantos anos andou na natação?
«Não muitos, porque no momento em que passei para a equipa de competição descobri que era alérgico ao cloro. Ainda hoje em dia tenho asma e rinite alérgica, mas essa alergia desapareceu».

Há mais desportistas na família?
«O meu pai jogou voleibol e hoje em dia faz BTT. É o único».

Os pais sempre o apoiaram nesta decisão de apostar no taekwondo?
«Sempre, sempre. Foram fundamentais até hoje, no apoio dado, na liberdade concedida e no suporte financeiro. Estamos a falar de um desporto caro. Aos 18 anos saí de casa e vim estudar para Braga, só ia a casa ao sábado. Passei a viver numa residência em Braga».

Perdeu algum conforto…
«Sim, até a dormir. O quarto tinha uma cortina rota e entrava muita luz. Não conseguia dormir e a solução encontrada foi enrolar uma toalha à volta da cabeça. Continuo a fazer isso muitas vezes. Ponho uma toalha para tapar os olhos e coloco headphones.

A escola nunca foi prejudicada?
«Até ao 12º ano foi fácil. Os meus pais nunca me exigiram vintes e sempre me puseram à vontade. Tive a ajuda do estatuto de atleta de alta competição, sim, mas tive direito a ele. Eu acabei o secundário com média de 17,3».

E a Medicina surge como imposição familiar?
«Não, nada. Aliás, a maior razão para essa escolha é simples: eu queria ficar na Universidade do Minho, ponto. Fui ver os cursos, queria algo relacionado com investigação e Medicina fazia sentido. Tenho um avô que é médico também, pareceu-me lógico. Curiosamente, hoje em dia prefiro a parte clínica, o contato com o paciente. Por razões erradas fiz a escolha certa».

Que médico quer ser?
«Nesta altura não sou um bom médico. Ainda. Dou tudo ao taekwondo e o pouco que sobra vai para a Medicina. Tem chegado e já estou no sexto ano, mas tenho de adquirir muitas competências. Não quero iniciar a prática sem antes colmatar as minhas faltas. Sei o necessário, não sei tudo».

Há pontos em comum entre o taekwondo e a Medicina?
«O desafio é muito parecido. Resolver o puzzle, perceber a solução… o corpo humano é uma máquina perfeita, se há uma coisa que está a falhar eu quero perceber o que é».

É uma pessoa disciplinada?
«Quando tem de ser, tem de ser. Às vezes ando muito cansado, mas tenho de treinar, tenho de estudar… Sou obrigado a ser disciplinado, não há alternativa».

Tem tempo para a vida social? Namorada, amigos…
«Felizmente estou rodeado de pessoas compreensivas. Entendem que isto não vai durar para sempre. Perdi alguns amigos por não estar com eles, mas se os perdi é porque não eram meus amigos. O pessoal do taekwondo é como se fosse família, ajuda-me bastante».

Quantas viagens de avião fez em 2015 para competir?
«Fui a 22 competições fora do país. Não tenho medo de andar de avião, felizmente».

Estes Jogos chegam com quatro anos de atraso?
«Bem, em Londres eu só tinha 19 anos. Era um miúdo. Na altura fui vice-campeão do mundo e percebi que ainda podia lá ir. Mas o que mais me custou não foi ter falhado a presença nos Jogos2012».

Então o que foi?
«Perder o apoio financeiro do Comité Olímpico. Queria devolver esse dinheiro aos meus pais. A bolsa que eu recebia servia para eu recompensar os meus pais por tudo o que fizeram por mim. Estava feliz por isso. Quando perdi o apuramento… fiquei sem essa bolsa. Foi duro, para mim e para os meus pais».

E esta exposição mediática incomoda ou motiva?
«Não faço nada no taekwondo pela fama. Aliás, se quisesse fama não vinha para esta modalidade (risos). Adoro tentar dar visibilidade ao taekwondo, de partilhar imagens do que faço, mas não tem nada a ver com a fama».

Tem algum ídolo no desporto?
«O Ayrton Senna».

Era muito jovem quando ele faleceu.
«Nasci em 1991, ele morreu em 1994. Depois vi muitos vídeos, filmes, criei uma admiração incrível por ele. Dentro daquele carro ele ia ao limite. Uma vez vi uma entrevista ao Villeneuve em que ele dizia que numa situação de confronto, em pista, o primeiro a travar nunca era o Senna. Ele pressentia esse receio nos outros e levava essa adrenalina ao extremo».

Aplica um pouco dessa adrenalina no taekwondo?
«Tento retirar prazer de tudo o que faço, acima de tudo. Às vezes devia estar morto num treino e estou no auge das minhas capacidades. Quando saio do treino cai-me tudo em cima. Com a repetição o cansaço vai desaparecendo e o corpo habitua-se».

Representar Portugal nos Jogos não intimida?
«Não, não pode ser. Não me pode limitar. Vamos ver se consigo o que quero. Vai ser divertido (risos)».

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