Um homem está ajoelhado na relva do estádio St. Denis. Tem o braço direito cruzado sobre o peito. A mão esquerda cobre a boca, o polegar assenta no queixo, o indicador repousa ao lado do nariz. O sobrolho franzido completa a caricatura de um pensador. O homem ajoelhado faz questão de dizer ao mundo que, tal como qualquer um dos milhões de espectadores que o observam nos ecrãs, não faz a mínima ideia de como explicar o que acabou de acontecer.



O que acabou de acontecer é qualquer coisa parecida com isto: imaginem um feliz possuidor de um bilhete de lotaria que vale uma pequena fortuna - digamos, o segundo prémio. Agora imaginem essa pessoa a sair de casa, pronta para ir levantar o dinheiro, quando uma rajada de vento faz voar o bilhete para longe. Sem lhe dar tempo para lamentar a pouca sorte, logo depois o vento muda de direção e volta a pôr-lhe o bilhete nas mãos. Acham incrível? Pois agora estiquem um pouco mais as fronteiras da incredulidade. Porque uns quarteirões mais à frente, acontece algo ainda mais incrível: uma terceira rajada de vento faz-lhe chegar às mãos um novo bilhete - e este vale o primeiro prémio.

É nesse instante que Lilian Thuram se rende à evidência, ajoelhando-se no relvado de St. Denis. É o seu tributo à força do destino. Tem a pose intrigada de alguém que acabou de ganhar a lotaria duas vezes seguidas e não percebe como é isso possível. Ou, então, a pose de um lateral-direito que, no jogo mais importante da sua vida – a meia-final de um Campeonato do Mundo - acabou de marcar, com 23 minutos de intervalo, os únicos golos internacionais em 17 anos de carreira.




Uma França de tração atrás

Lilian Thuram foi lançado por Arsène Wenger em 1991, no Mónaco. A robustez, a inteligência e a agilidade nos duelos faziam dele um central de exceção, mesmo antes da ida para a série A - nessa altura a Meca para os melhores defesas mundiais. Já a participação ofensiva sempre foi conversa diferente: as limitações na saída de bola recomendavam que deixasse os holofotes a outros companheiros de setor. Daí que, a central ou adaptado a lateral direito, poucas vezes passasse a linha do meio-campo. A prova definitiva, os irrisórios 15 golos marcados em 826 jogos como profissional. Um golo a cada 55 jogos, ou a cada 5 mil minutos em campo.

Marcar golos era, assim, a última das suas expetativas quando a França começou o «seu» Mundial-98, sob a liderança contestada de Aimé Jacquet. Apesar do talento criativo de Zinedine Zidane, essa era uma equipa montada de trás para a frente: a falta de um goleador de classe mundial era disfarçada pela consistência do bloco defensivo, e pela ousadia de dois jovens suplentes, Henry e Trezeguet.

Os quatro defesas titulares (Thuram-Blanc-Desailly-Lizarazu) jogavam de olhos fechados. Os números provam-no: entre 1996 e 2000, fizeram 28 jogos em conjunto, não perderam nenhum e sofreram apenas 13 golos. À frente deles, Deschamps era o patrão, a referência de ritmos e posição. E, com o decorrer da prova, Jacquet não teve dúvidas em acentuar a vocação defensiva da sua França, acrescentando-lhe um terceiro médio defensivo e organizando-a numa espécie de 4x3x2x1, também chamado «árvore de Natal». A figura explica:



A 8 de julho, na segunda meia-final do Campeonato do Mundo - um dia depois de o Brasil carimbar a passagem diante da Holanda - a árvore de Natal de Jacquet esbarra em dois adversários de peso. O primeiro, uma Croácia astuta e empolgadíssima, apostada em levar até ao fim o estatuto de «outsider» no primeiro Mundial em que participa. O segundo, ainda mais terrível, o medo de falhar, que faz tremer as pernas e encolhe a equipa a cada minuto que passa.

Ao intervalo, com 0-0, a Croácia já está na mó de cima e as bancadas mergulham num silêncio pesado. Numa palestra angustiada, recordada no documentário Les yeux dans les bleus, Aimé Jacquet tenta sacudir uma equipa paralisada pelo receio: «Assim, nem uma chance. Ninguém se mexe! Reajam como equipa! Medo de quê? Medo de quem?! Se continuarem com medo vão perder!», grita antes do regresso para a segunda parte.

O bilhete que vai e volta

Não há tempo para perceber se a mensagem passa ou não: no primeiro lance do recomeço, Thuram, um lateral direito com tiques de central, comete um erro de principiante: deixa-se ficar uns bons 5 metros para trás enquanto a defesa sobe para fazer a linha de fora de jogo. É o suficiente para o passe de Asanovic deixar Suker na cara de Barthez e para a Croácia se adiantar no marcador, apenas 25 segundos depois do pontapé de saída.

E então tudo continua a acontecer muito depressa. Furioso consigo próprio e com o Mundo em geral, Thuram aproveita a saída de bola para se incorporar no ataque. Para sorte sua, a França opta por atacar pela direita. Boban antecipa-se e interceta a bola. Thuram, cego de raiva, rouba-lha e corre para área, depois de tocar para o meio. Djorkaeff conta o resto aos microfones da RMC Sport. «Nunca percebi que raio estava ele a fazer ali. Eu estava à entrada da área, a bola chega-me, e vejo passar um foguete, vrrrum! Só tenho tempo de devolver o passe para o meio, mas nunca esperei que fosse Thuram a receber a bola naquela posição, por uma vez na vida». O remate em queda, de pé direito, repõe o empate. Passaram 90 segundos desde o pontapé de saída, 65 segundos desde o golo de Suker. Em minuto e meio, o bilhete premiado fugiu e voltou às mãos de Lilian.

A história não acaba aqui, já se sabe: libertada pelo erro e pelo golo redentor de Thuram, a França perde o medo e volta a saber o que fazer do jogo. À passagem dos 70 minutos, Zidane faz um passe longo, paralelo à linha do meio-campo, a solicitar a entrada do lateral-direito. Em condições normais, Thuram não teria subido. Mas aquelas não são condições normais: aquele é o jogo de uma vida, de um homem em estado de graça. Thuram avança. Thuram tenta a tabelinha com Henry. Thuram insiste após o corte de Bilic. E depois mete o pé direito entre as pernas de Jarni, tira-lhe a bola com jeitos de carteirista e, sem pensar, antecipando-se a Soldo, atira um indefensável remate em arco, com o improvável pé esquerdo que lhe dá o segundo bilhete premiado nessa noite.




Depois ajoelha-se e festeja. Ao seu estilo, inventado naquele preciso momento: o estilo de um homem que não está habituado a festejar e se interroga sobre o seu lugar no equilíbrio do cosmos. Os companheiros cercam-no, envolvem-no num mar de abraços, e Thuram mantém a expressão perplexa de quem não sabe onde guardar tanta felicidade.



«Habitualmente não marco golos nem nos treinos. Quando chego perto da baliza costumo ver tudo vermelho, mas hoje tive 200 por cento de sorte» dirá na zona mista. Nos dez anos de carreira que tem pela frente, festejará apenas mais um golo, irrelevante e banal. Mas ainda não o sabe. Ovacionado pelos companheiros quando entra no autocarro, que leva a equipa de volta a Clairefontaine, Thuram repetirá várias vezes a frase que lhe resume o espanto: «Tudo pode acontecer no futebol. Tudo pode acontecer!».

É pelas imagens de Les yeux dans les bleus que ficamos a conhecer o resto. De volta ao quarto, Thuram põe um disco de Miles Davis e tenta descontrair. Fala para a câmara, mas está a falar sozinho. É um homem só. Nessa noite deu por si no topo do mundo. Agora ainda não sabe bem para onde ir, mas já tem a certeza de que será sempre a descer.