Passava pouco das 21.40 do dia 26 de maio de 1989, quando Michael Thomas marcou um dos golos mais importantes da história do futebol inglês. Reparem: não um dos mais bonitos, muito menos um dos mais inspirados. Mas, seguramente, um dos que tiveram efeitos mais duradouros no tempo. Pelo virar de página que representou sobre o estatuto do Liverpool, como grande dominador do futebol inglês. Pela carga dramática que o fez estar na origem de um livro (Fever Pitch, de Nick Hornby) que criou a moda da literatura de bola. E, por fim, pelo impacto sem precedentes que a transmissão televisiva, numa invulgar sexta-feira à noite, teve no panorama mediático inglês. É exagerado dizer que a Premier League nasceu nesse momento? Sim, é. Mas só um bocadinho.

A história deste golo começa com uma tragédia, 41 dias antes: a morte de 96 adeptos do Liverpool, em Hillsborough, que além de deixar o futebol inglês em estado de choque obrigou ao adiamento do jogo entre os dois principais candidatos ao título, inicialmente marcado para 23 de abril. A sobrecarga de jogos tornou impossível encaixar o jogo antes da final da Taça, realizada a 20 de maio entre Liverpool e Everton, num clima de tremenda emoção:

Assim, contra todas as tradições, o campeonato inglês acabou por ser decidido já depois da Taça, na forma de uma final com o campo invulgarmente inclinado: jogando em casa, o Liverpool partia com três pontos de avanço e um saldo de golos que lhe permitia, até, perder pela margem mínima. Além disso, depois da conquista da Taça, a perspetiva de uma dobradinha como forma de homenagem aos adeptos desaparecidos, parecia quase uma inevitabilidade para um Liverpool que, para cúmulo, tinha assinado uma recuperação sensacional, anulando um défice de 15 pontos, sem perder qualquer jogo desde a mudança do ano.

Depois havia os antecedentes históricos: o Arsenal não ganhava em Anfield desde 1974, e não era campeão desde 1971. A equipa treinada por George Graham tinha a fama, e o proveito, ser praticar um futebol previsível e aborrecido, dando pretexto a que o cântico «boring, boring Arsenal» fosse escutado com frequência quando atuava fora de casa. A equipa vinha perdendo gás e parecia ter deixado passar a ocasião de fazer história. E foi então que John Barnes virou para o lado errado.

Thomas, o velocista(!)

Treinado pelo mítico Kenny Dalglish, esse Liverpool era herdeiro em linha direta da equipa que dominou o futebol europeu até à tragédia de Heysel, em 1985. Tinha conquistado cinco dos últimos sete títulos e contava ainda com estrelas de primeira linha, casos de Ian Rush, John Aldridge e John Barnes.

Mas nessa sexta-feira, talvez anestesiado pelo avanço que lhe permitia gerir o jogo e o marcador com uma tranquilidade entorpecedora, o Liverpool esteve sempre muito longe da equipa dominadora e autoritária que tinha recuperado a liderança, já com a meta à vista. A lesão de Rush, à meia hora, ajudou a minimizar a ambição de chegar ao um golo que pusesse em sentido o boring boring Arsenal – que, mesmo tendo de ganhar por dois golos, não abdicava de um boring, boring 5-4-1. Assim, o jogo ia decorrendo com pouca emoção, e ainda menos ocasiões de golo quando, aos 52 minutos, uma cabeçada oportuna de Alan Smith deixou Anfield à beira de um ataque de nervos e o Arsenal a apenas um golo do título.

Era o ingrediente que faltava para, somado às emoções intensas das últimas semanas, fazer com que a máquina encarnada começasse a ter dúvidas. A ITV, que transmitia o jogo, não podia acreditar na sorte que tinha: um campeonato decidido ao sprint, com 20 minutos finais capazes de fazer roer as unhas ao mais frio dos adeptos neutrais.

Aos 74 minutos, o jovem médio do Arsenal Michael Thomas, então com apenas 21 anos, desperdiçou a possibilidade de um primeiro encontro com a glória, rematando fraco para as mãos do guarda-redes Grobbelaar, em boa posição na área. O desfecho desse lance diminui a confiança dos jogadores do Arsenal, que permitiram ao Livepool um quarto de hora final mais desafogado, chegando aos 90 minutos com a bola controlada.

Eram tempos em que os jogadores ainda não tinham nome na camisola, e os números eram sempre de 1 a 11. Eram tempos em que o guarda-redes podia recolher com as mãos os passes dos colegas e em que não havia placas a anunciar ao público de quanto tempo seria a compensação – sendo que só muito raramente se ultrapassava os dois minutos. Por tudo isso, quando, aos 90 minutos e 55 segundos, John Barnes ganhou uma bola no meio campo do Arsenal e acelerou numa diagonal dirigida à bandeirola de canto, o público de Anfield acentuou os cânticos de vitória, sabendo que só uma catástrofre impediria o Liverpool de revalidar o título.

E foi então que se deu a catástrofe: seguro dos seus dotes magníficos de driblador, Barnes optou por não queimar tempo junto à linha e mudou de rumo, em direção à área do Arsenal. O apelo do kop terá reforçado a tentação de um último golo, a coroar a conquista do título? O certo é que, ao entrar na área, Barnes adiantou demasiado a bola com o seu pé esquerdo e permitiu a Richardson o corte que mudou a história desse campeonato e do futebol inglês nos próximos anos.

Passam apenas 20 segundos entre o momento em que Barnes perde a bola e o ponto mais alto da carreira de Michael Thomas. 20 segundos durante os quais o guarda-redes Lukic lança a bola para o lateral-direito Lee Dixon e este lança Alan Smith na direita. Para os rigores táticos atuais, é quase chocante ver a lentidão com que o Liverpool organiza a recuperação defensiva e a cratera que se abre para a corrida de Michael Thomas quando Smith lhe faz o passe de pé esquerdo.

O número 4 do Arsenal nunca foi propriamente um velocista - como o público português viria a perceber nove anos mais tarde, nos 18 lentíssimos jogos que cumpriu com a camisola do Benfica. Mas nesses segundos decisivos é o homem mais rápido em campo. E também o mais afortunado: é a sorte que o faz ganhar um ressalto a Steve Nicol, depois de uma receção algo imprecisa e, de repente, deparar-se com o sonho de qualquer candidato a jogador: só o guarda-redes pela frente, um título por decidir na ponta do pé direito e um país em suspenso do destino do seu remate.

Thomas tem o mérito de não se precipitar na decisão: chega a dar a ideia de que perde demasiado tempo, permitindo o regresso de Nicol e Hansen, que tentam o carrinho desesperado. É esse prolongar de suspense que faz com que Grobbelaar se sente, abrindo caminho para a conclusão vitoriosa, numa bola picada com a parte de fora do pé direito, que acaba de gelar Anfield e dá ao Arsenal o seu primeiro título em 18 anos.

O Liverpool voltaria a ser campeão no ano seguinte - mas pela última vez no seu historial. Poucos, ou talvez mesmo nenhum campeonato, na história centenária da Liga inglesa, se tenha decidido de forma tão dramática – só o golo de Aguero pelo Manchester City, nos descontos da última jornada em 2012, terá andado la perto. E, seguramente que, até então, nenhum tinha tido uma decisão tão feita à medida da televisão. É lógico lembrar que, apenas dois anos depois desse golo de Thomas, incentivados pelo dinheiro fresco de uma estação privada emergente – a Sky – os dirigentes dos principais clubes ingleses se sentaram a uma mesa para redefinirem as regras e a lógica de um campeonato cada vez mais dependente do financiamento das TV. Um desfecho mais ou menos inevitável, é certo – mas que talvez tivesse demorado mais uns anos, caso John Barnes tivesse optado por levar a bola para a bandeirola de canto, em vez de permitir a Michael Thomas viver o maior momento de glória alguma vez experimentado por um velocista lento.