Michael Laudrup foi a coisa mais parecida com um génio do futebol nos últimos anos. Se tivesse nascido numa favela, no Brasil ou na Argentina, e se a bola fosse a sua única forma de fugir à miséria, teria sido o maior de sempre. Tinha todas as qualidades para consegui-lo, mas faltava-lhe aquele instinto sórdido dos bairros de lata, que lhe teria dado a peça que faltava.»

  • Johan Cruyff, em 1998, comentando o final de carreira do dinamarquês

Um dos maiores talentos de sempre. Era o melhor do mundo no campo de treinos, mas raramente tirava partido pleno das suas qualidades durante os jogos. Tinha tudo, mas não era suficientemente egoísta»

  • Michel Platini, acerca do seu antigo colega de equipa

Pelé foi o melhor jogador dos anos 60, Cruyff o dos anos 70 e Maradona o dos anos 80. Nos anos 90, foi Laudrup»

  • Franz Beckenbauer

Há um lugar de honra para Michael Laudrup na lista que tem por título «melhores jogadores que nunca são mencionados na lista dos melhores de sempre». Esse lugar é ainda mais destacado na sublista de «jogadores preferidos dos melhores jogadores de sempre», como se vê pela amostra em anexo. E só não vale a pena fixarmo-nos na subcategoria de «jogadores que toda a vida pareceram jogar de smoking» porque essa foi criada no início da década de 90, precisamente para homenagear o próprio Michael, o mais velho - e mais talentoso - dos irmãos Laudrup.

A sua carreira estende-se de 1983 – ano em que, com 19 anos recém-cumpridos, chega à Meca do futebol europeu da época, a Série A - até 1998 – quando pendura as chuteiras, após uma épica derrota com o Brasil, nos quartos de final do Campeonato do Mundo. O período áureo é, sem dúvida, aquele que vive entre 1989 e 1996: cinco épocas no Barcelona e duas no Real Madrid, quando junta um título de campeão europeu a cinco títulos de campeão espanhol e dois troféus para melhor jogador da Liga – e, proeza ainda maior, o apreço e admiração, que perduram até hoje, dos adeptos dos dois clubes rivais.

A influência de Platini

Mas há, na carreira de Michael Laudrup, um antes e depois de Espanha. E o golo que vamos dissecar esta semana enquadra-se no «antes»: estamos em dezembro de 1985, no preciso momento em que o dinamarquês, então com 21 anos, anuncia ao mundo a sua intenção de garantir um lugar entre os melhores.

Após duas épocas emprestado à Lazio, o jovem Michael, contratado pela Juventus ainda com 18 anos, tem a sua primeira oportunidade na vecchia signora depois da saída do polaco Boniek libertar uma das duas vagas para jogadores estrangeiros a que, à data, os clubes italianos têm direito. A outra vaga, é para a indiscutível estrela da companhia, o francês Michel Platini, que por essa altura, pré-México 86, ainda discutia com Maradona a coroa de melhor do Mundo.

É no contacto com Platini que começa a germinar uma transformação decisiva: quando chega a Turim, Laudrup é ainda um segundo avançado, rápido e driblador, que na seleção dinamarquesa fazia uma dupla maravilhosa com o tanque Elkjaer Larsen.. As duas temporadas que passa com o francês refinam-lhe o jogo subtil e cerebral e permitem-lhe antecipar a gradual perda de velocidade com outras armas. Nos seus anos dourados, em Espanha, Laudrup ficará conhecido como o rei das assistências e dos passes inimagináveis. Esta compilação de 83 minutos (!) explica porquê.

Há uma óbvia ligação direta entre este recital de visão de jogo e os passes teleguiados que, juntamente os livres em folha seca e instinto goleador, faziam de Platini o indiscutível rei da Europa, por esses anos.

Nesse ano de 1985, a Juventus ostenta uma das coroas mais tristes de sempre: é campeã europeia em título, depois da trágica final do Heysel, com o Liverpool, onde morrem 39 adeptos italianos. É com esse estatuto que, em dezembro, parte para o Japão, onde vai discutir o título intercontinental com o surpreendente vencedor da Taça Libertadores, o Argentinos Juniors.

De génio para génio

Um rápido parêntesis para explicar que essa é uma Juventus de transição: Trapattoni ainda manda no banco, mas já lá não estão lendas como Zoff, Gentile, Tardelli, Rossi e Boniek, e os seus substitutos sofrem para afirmar-se. Talvez por isso, ou talvez pelo péssimo estado da relva, nessa tarde fria de dezembro, no estádio Nacional de Tóquio, a Juventus sofre mais do que o previsto para se bater com uma equipa argentina de classe média, que tem no veterano Olguin – campeão do Mundo em 1978 – e nos jovens Batista e Borghi – que virão a sê-lo daí por sete meses – os seus jogadores mais conhecidos.

Laudrup faz dupla avançada com Aldo Serena, um profissional competente, mas que não fala o mesmo idioma de Platini ou do seu parceiro dinamarquês. O Argentinos Juniors equilibra as coisas na primeira parte e vai ganhando confiança com o passar do tempo. Adianta-se uma vez, e Platini responde, de penálti. Depois, o insólito: com 1-1 no marcador, Platini marca um dos melhores golos da carreira, mas o árbitro Volker Roth anula-o, devido a um fora de jogo posicional de Serena. O francês, incrédulo com a destruição da sua obra de arte, deita-se no chão, gerando uma imagem para a posteridade:

Nos instantes seguintes, o Argentinos Juniors volta à carga e, aos 75 minutos, volta a colocar-se em vantagem, com um golo de Castro. Pouco organizada, a Juventus carrega com mais coração do que lucidez. A oito minutos do fim, Serena conquista um livre lateral. Na cobrança, por duas vezes, os jogadores argentinos aliviam mal a bola. O segundo mau alívio é fatal, porque vai parar aos pés de Laudrup.

No batatal de Tóquio o dinamarquês faz aquilo que fará melhor do que qualquer outro no resto da carreira: cola a bola no chão e põe a inteligência a funcionar. É o momento luminoso que resgata um jogo feito aos trancos e solavancos, de muita intensidade e pouca lucidez.

Só dois jogadores naquele relvado entendem a linguagem dos génios. Por isso, logicamente, o primeiro instinto de Laudrup é procurar Platini na zona central. O seu passe de pé direito encontra-o, apesar de um desvio num braço argentino, e o francês, com uma rapidez fulgurante, põe ordem no caos. Com o pé em raqueta, entrega uma bandeja de caviar que aterra 20 metros mais à frente, por altura da marca de penálti, na ponta da bota esquerda de Laudrup - marca Patrick, como bem sabem os fetichistas dos equipamentos.

Revendo o lance, por entre os montes de terra e os buracos na relva queimada e a rápida saída do guarda-redes Vidallé, a pergunta que sobra é saber como fez Laudrup para tornar a bola tão redonda outra vez. Hop, um toque de pé esquerdo, paralelo à linha de baliza, para a tirar do caminho de Vidallé. Hop, um toque de pé direito para a aproximar da baliza, apesar do encosto do guarda-redes que quase o deita ao chão. Depois, no limite do equilíbrio, de ângulo apertadíssimo quase sobre a linha de fundo, o derradeiro toque de pé direito, que empurra a bola para a baliza, da única forma possível.

Mais do que valer o empate na fase do desespero, para uma final que a Juve acabará por ganhar nos penaltis, o golo de Laudrup entreabre-lhe as portas da celebridade mundial, que ficam definitivamente escancaradas com o Mundial do México. Mas, acima de tudo, simboliza uma passagem de testemunho de génio para génio, entre o maior 10 europeu da sua geração, a ano e meio de encerrar a carreira, e um 11 que, dentro em breve se transformará no 10 de culto que todos os conhecedores quererão imitar.

«Olá, sou o Michael e vamos ser colegas»

A história podia acabar aqui, mas tratando-se de Laudrup vale sempre a pena ir um pouco mais longe. Dizia-se lá atrás, no início da conversa, que há um antes e depois de Espanha na carreira de Michael Laudrup, «o jogador de culto dos jogadores». Já vimos o antes, ainda há tempo para falarmos do depois. Mais precisamente, dessa última temporada de 1997/98, em que o dinamarquês, depois de um ano a esbanjar talento no Japão, assina pelo quarto campeão europeu da sua carreira, o Ajax de Amesterdão, treinado pelo seu antigo companheiro de seleção, Morten Olsen.

É aí que, depois de se ter cruzado com Rui Barros na Juventus, em 1988/89, e de se ter desencontrado com Figo no Barcelona, em 1994, Laudrup volta a cruzar-se com um jogador português. Dani, que no clube de Amesterdão herda a mítica camisola 14, de Cruyff, conta como o dinamarquês o cativou logo ao primeiro contacto: «Foi no meu primeiro dia de pré-temporada. Tinha acabado de chegar de férias e ainda não sabia quem eram os novos jogadores do clube. Cheguei ao balneário, cumprimentei os meus conhecidos e, meio distraído, comecei a preparar as coisas no meu lugar habitual. De súbito, vejo alguém a atravessar a cabina de uma ponta a outra, para vir ter comigo e dizer-me com toda a naturalidade: Olá, sou o Michael e vamos ser colegas. Encantado por conhecer-te. Fiquei boquiaberto: como era possível um jogador com um currículo daqueles mostrar tanta simplicidade?»

Dessa temporada, Dani guarda a memória de um companheiro de equipa excecional, de um homem culto, e de um jogador simplesmente extraordinário que mantinha as qualidades intactas: «Já não tinha muita velocidade, mas tinha um sentido posicional maravilhoso. Adaptou-se bem à equipa. O Litmanen era o 10, e jogava na posição central onde o Laudrup tinha jogado no Barcelona e no Real. Por isso passou a jogar sobre a esquerda, abrindo espaços para outros aparecerem no meio. Chegámos a jogar os três: eu na direita, ele na esquerda, o Litmanen no meio e a equipa não se desequilibrava. Era o tipo de jogador a quem queríamos passar a bola quando tínhamos problemas, porque ele simplificava tudo.»

Laudrup e Dani festejam o título de campeão 1997/98

Sem surpresa, Michael Laudrup terminou a carreira como campeão, conquistando campeonato e taça da Holanda e recebendo a homenagem sentida dos colegas de equipa. «Nunca teve aquela obsessão com os holofotes comum a muitos grandes jogadores. Tinha qualidades humanas fantásticas e a humildade era uma delas. Está seguramente no pódio entre todos os craques com que joguei», conclui o internacional português.