Olhar para a carreira de Dani é, antes de mais, um exercício de imaginação. Porque se ninguém lhe tira o prestígio de ser o primeiro português a jogar e marcar na Premier League, de brilhar no último Ajax que impunha respeito na Europa, ou de ter terminado o percurso num dos grandes de Espanha (com apenas 26 anos!) quem o viu jogar terá sempre tendência a fazer uma pergunta antes de qualquer outra: «como teria sido, se...?».

Neste «se» cabe uma certeza: a de que o talento invulgar, que apresentou a um público global no Mundial de sub-20 do Qatar, com apenas 18 anos, não teve expressão à altura nos cerca de 200 jogos e três dezenas de golos que assinou, em nove épocas como profissional. Mas há, ainda assim, pérolas avulsas que permitem responder em parte a essa pergunta. A mais brilhante delas todas foi conseguida com a camisola do Ajax a 19 de março de 1997, em Madrid, no Vicente Calderón, nos quartos de final da Liga dos Campeões.

« Como teria sido, se...?». Teria sido como se conta a seguir - só que muitas mais vezes.



1996/97 é a temporada de estreia de Dani no Ajax – mas a última de Van Gaal à frente da equipa que, em 1995 e 96, levou sucessivamente ao título europeu e a outra final, perdida para a Juventus. Há um clima de fim de ciclo no ar, e a equipa chega ao fim do inverno já sem hipóteses de ser campeã na Holanda, debilitada por lesões e castigos. Resta-lhe a Europa, mas o At. Madrid, campeão espanhol em título, bem comandado por Radomir Antic e com estrelas como Pantic, Caminero, Esnaider ou Simenone, faz figura de favorito neste embate, especialmente depois de ter empatado (1-1) no Arena de Amesterdão.

Dani, lesionado, não esteve nesse primeiro jogo, mas recupera a tempo de alinhar 20 minutos com o Roda, cinco dias antes da segunda mão e integrar a lista de convocados. Bogarde, Márcio Santos e Kluivert estão fora. E, para complicar, uma das estrelas da equipa, o finlandês Jari Litmanen, está longe da melhor forma.

Dani:
«Uma das regras no Ajax era a de que todos os jogadores que regressavam de lesões tinham de fazer um treino especial com o Bobby Haarms, um membro da equipa técnica que era uma figura emblemática do clube. O treino era técnico e físico, muito duro. E o Jari só tinha feito essa sessão antes do jogo de Madrid – ele não estava bem, e em jogo isso ia perceber-se nas dificuldades que mostrava em sair da pressão, ele que em condições normais nunca perdia uma bola.»

Essa certeza – aliada ao facto de ser, entre os convocados, o jogador que mais facilmente pode alinhar no lugar de Litmanen - faz com que Dani cumpra a viagem para o estádio com a convicção de que vai viver um dia especial, mesmo sabendo que vai começar no banco. E todo o tempo que o separa do pontapé de saída serve para reforçar essa intuição.

Dani:
«O Futre estava na primeira passagem como director desportivo do At. Madrid e lembro-me de lhe ter dito à chegada, quando nos cruzámos: «Estão lixados, hoje estou com uma grande fé!» . Além disso, o meu pai e o meu tio tinham ido ao estádio apoiar-me e isso também ajudou. E quando vi os adeptos nas bancadas e o ambiente que estava a criar-se uma hora antes, fiquei com uma vontade louca de ir lá para dentro. Por isso, praticamente desde que o jogo começou lembro-me de estar a comentar com o Wooter, que estava sentado ao meu lado: Hoje partimos isto tudo, quando entrarmos »

Com um onze inicial «remendado» por Van Gaal, o jogo começa mal para o Ajax, que se deixa dominar e vai para o intervalo a perder 1-0. Para complicar, ainda perde o capitão Danny Blind, lesionado. O 4x3x3, desenhado para um jogo de posse, dá-se mal com a pressão espanhola, especialmente porque Litmanen não encontra espaço para lançar contra-ataques. Mesmo assim, um golo de De Boer, aos 49 minutos, deixa a eliminatória empatada e faz com que a equipa recue ainda mais, encostada às cordas por um Atlético poderoso. Nessa altura, já Dani tinha começado a aquecer.


O onze inicial «remendado» por Van Gaal


Dani:
«O Danny Blind saiu tocado e foi para o banco na segunda parte. O Van Gaal mandou-me aquecer muito cedo, logo depois do intervalo, e lembro-me de ter passado o tempo a gritar ao Blind: diz ao homem para me pôr! Não era uma coisa que eu pudesse dizer diretamente ao treinador, mas ele tinha estatuto e influência no grupo. A dez minutos do fim Van Gaal mandou-me lá para dentro, no lugar do Litmanen. Lembro-me de que estávamos em dificuldade, fechados, nessa altura apenas a tentar segurar o 1-1 e levar o jogo para o prolongamento.»

A equipa resiste, e a chegada do prolongamento é sentida pelos jogadores do Ajax como uma pequena vitória. Tanto mais que o Atlético, obrigado a pressionar ainda mais pelo apoio do público, está desgastado e abre mais espaços do que no início. Condições ideais para contra-ataques, e para a dupla Dani-Wooter cumprir o que tinha prometido no banco.

O momento mágico nasce aos 100 minutos e, como acontecia tantas vezes no Ajax, começa num passe longo de Frank de Boer. A bola segue na direção de Wooter que, in extremis, improvisa um toque de recurso para evitar o carrinho de Solozabal, atrasando na direção de Melchiot. O corte falhado do central espanhol desequilibra a organização defensiva dos «colchoneros» e abre um enorme espaço no corredor central, que Dani, a jogar como falso ponta de lança, vê antes dos outros e explora a toda a velocidade.

Ao mesmo tempo, Wooter, rapidíssimo a levantar-se, dá uma excelente linha de passe a Melchiot, pedindo-lhe a bola na frente, com um gesto nervoso do braço direito. O passe sai, com um pouco de força a mais, e obriga Wooter a improvisar pela segunda vez: desliza no relvado e, com o pé esquerdo, chega à bola uma fração de segundo antes do corte de Bejbl.

O toque sai para o meio, na direção de Dani, mas também não é perfeito: se o fosse, o português seguiria em corrida para a área, só com Molina pela frente. Mas como a bola sai quase em paralelo à linha de área, Dani tem de fazer um movimento oblíquo de aproximação, que lhe retira velocidade. A partir desse momento a progressão para a área já não é hipótese porque Santi, o outro central, terá tempo para lhe fechar o espaço. E é então que Dani toma a decisão que todo aquele dia lhe tinha sussurrado ao ouvido, desde a saída do hotel.

O golo


Dani:
«Nas imagens podes perceber a minha confiança na forma como aquele movimento sai equilibrado. Naquela circunstância, um jogador que não está num bom momento facilmente levanta o tronco, ou pega na bola de outra forma. Para quem chuta de pé esquerdo, como eu, a colocação mais natural do remate seria no outro ângulo, do meu lado esquerdo. Mas como tive de lateralizar a corrida para a bola, com a rotação do corpo acabei por colocá-la do lado oposto. Na altura não vi que o guarda-redes estava adiantado, e foi melhor assim, porque provavelmente teria tentado o chapéu»


Nem é preciso ver a bola a carimbar na trave de Molina antes de entrar: assim que lhe sai do pé Dani sente de imediato que o remate é perfeito. Por entre o silêncio gelado das bancadas e a euforia do banco do Ajax, sprinta na direção da linha lateral. Depois, lembra-se de Wooter e volta atrás, para partilhar a euforia com o companheiro de banco, agradecendo-lhe o passe. A seguir pára e levanta o braço direito, erguendo o indicador para a bancada, numa dedicatória à família. Pela primeira vez o Ajax ganha vantagem na eliminatória. Não voltará a perdê-la, mesmo que até final haja mais um golo para cada lado. O Ajax vence por 3-2 e chega novamente à meia-final da Liga dos Campeões.



Dani, que tinha marcado dois golos no seu jogo de estreia na prova, diante do Glasgow Rangers, volta a sentir a estrelinha dos grandes momentos a seu lado. Não é o único: Van Gaal, habitualmente pouco expansivo, não disfarça a euforia no final do jogo.

Dani:
«Ele andava no balneário, de um lado para o outro, e sempre que passava por mim sorria, punha as mãos na cabeça e dizia: mas que grande golo! Como  acabei esse jogo com uma luxação no ombro e ele disse-me logo: agora vais para Portugal e recuperas o tempo que for preciso . Depois, quando encontrou o meu pai, ele entusiasmou-se: deu-nos sorte, agora tem de viajar connosco para as meias-finais!»


Van Gaal abraça Babangida

Este parecia o início de uma grande história, mas acaba por ser o momento em que Dani esteve mais perto do topo: não voltaria a marcar golos na Champions. Na meia-final, uma fortíssima Juventus, com Vieri, Zidane e Deschamps, resolve as coisas sem apelo (1-2 e 1-4). E a saída de Van Gaal para o Barcelona, nesse verão, vira uma página na história do Ajax - que nunca mais volta a ser tão temido na Europa. O remate inspirado de um português de 20 anos marca o último momento empolgante nessa epopeia e também o início da relação de Dani com o Atlético Madrid, e com um estádio onde voltaria, para deixar os últimos sinais exteriores de magia entre 2001 e 2003.



Dani
« Uma semana antes do jogo com o Ajax, o Atlético Madrid tinha perdido 5-4 com o Barcelona, para a Taça do Rei e o Figo tinha marcado um grande golo. Lembro-me de ouvir o presidente Gil y Gil desabafar, depois da nossa vitória: os portugueses lixaram-me a temporada!  O certo é que quando me transferi para o Atlético toda a gente se lembrava do meu golo. E vinham ter comigo a dizer que depois disso eu tinha de pagar a dívida para com os adeptos. Fiquei a dever-me mais noites como aquela? Respondendo agora, sim. Mas uma coisa é olhar para o que vivi com os olhos dessa altura, e outra é olhar para isso tudo, quase 20 anos depois.»

Fecha-se o ciclo: «como teria, sido, se...?» É rever. E imaginar.