Na sombra dos dois títulos mundiais de seleções e da linha de produção de Di Stéfanos, Maradonas e Messis, o futebol argentino também pode orgulhar-se da qualidade dos seus médios defensivos. De Gallego a Mascherano, passando por Batista, Simeone, ou por um fenómeno chamado Fernando Redondo

(pausa para vénia)

a galeria de nomes ilustres nos últimos 40 anos prova que, na quota daquilo a que por cá se chama «camisola 6» - para eles é a 5 - os argentinos não ficam a perder para ninguém. E se o desplante de Redondo em Old Trafford, em abril de 2000, pode simbolizar o momento em que os operários se transformam em ilusionistas, a consagração suprema dos ladrões de bolas teve outra data - 16 de junho de 2006 - outro palco - Gelsenkirchen - e outro protagonista - Esteban Cambiasso.

Não deve ter sido fácil acolher a herança de Redondo, que pendurou as botas em 2004, depois de quatro anos a lutar contra as lesões. Mas é justo reconhecer que, desde muito cedo, Cambiasso honrou as tradições, primeiro no seu país (Independiente e River), depois no Real Madrid, e, finalmente, no Inter, onde se fixou durante dez temporadas, ao lado de outra lenda do futebol argentino, Javier Zanetti.

Esta história apanha-o com 25 anos, no sítio certo, à hora certa e no auge das suas qualidades de recuperador insaciável e de distribuidor lúcido e enérgico. E, no entanto, o momento mais arrebatador da sua carreira começa por acaso: Cambiasso não era para estar em campo nesse mágico 31º minuto do Argentina-Sérvia, segunda jornada da fase de grupos do Mundial 2006.

O golo coletivo mais perfeito da história dos Campeonatos do Mundo – sim, mais perfeito até do que este, embora não tão glorioso – começa, na verdade, 15 minutos antes, quando Lucho Gonzalez, médio do FC Porto e dessa fantástica Argentina, fica no chão, agarrado à perna esquerda. Cambiasso mal tem tempo para aquecer e vai colocar-se ao lado de Mascherano, mas com mais liberdade de movimentos do que o parceiro: além das recuperações, cabe-lhe fazer a ligação com a dupla de criativos, Riquelme e Maxi Rodriguez, que por sua vez tinha a missão de alimentar os dois avançados, Crespo e Saviola.

A entrada a frio de Cambiasso dá-se, apesar de tudo, em circunstâncias favoráveis. A Argentina manda claramente no jogo e já vence por 1-0: logo aos 6 minutos, Maxi Rodriguez tinha concluido de pé esquerdo um maravilhoso movimento coletivo de oito passes. Brilhante, mas nada que pudesse preparar os espectadores para o que estava para acontecer mais à frente.

Em homenagem a Diego

No Arena de Gelsenkirchen está Maradona, vestido com uma réplica da célebre camisola «Le Coq Sportif» com que, 20 anos antes, levou a Argentina aos céus. O pibe delira com o que está a ver. E apetece pensar que é em sua homenagem que a seleção comandada por José Pekerman inicia, precisamente aos 29 minutos e 28 segundos, um poema sinfónico para nove jogadores, 25 passes e 54 toques.

Dos onze argentinos em campo, só dois – o guarda-redes Abbondanzieri e o lateral direito Burdisso estão fora do filme: apesar de percorrer uma vasta área, a movimentação dos argentinos foi sempre claramente inclinada para o lado esquerdo – aproveitando o dinamismo de Sorín, que acrescentava uma dimensão extra às soluções de ataque.

O momento zero começa numa recuperação sobre Kezman de Maxi Rodriguez, uma das grandes figuras dessa seleção, que viria a cair nos quartos de final, diante da Alemanha, sem perder um único jogo. E se a teia de passes é demasiado complexa para ser descrita passo a passo, vale a pena, ainda assim, chamar a atenção para duas coisas no festival de bola que se inicia aí.

A primeira é que nenhum dos nove envolvidos cai na tentação de dar mais de três toques na bola – um sinal da interiorização perfeita das regras habitualmente impostas nos treinos de posse e circulação. A segunda, é a definição perfeita dos ritmos, até à aceleração decisiva, originada por Saviola: é apenas ao 20º passe, após 48 segundos de preparação, quando o avançado sai da área e descai quase até à lateral, para tabelar com Riquelme, que se percebe o sentido daquele tic-tac de relógio, com Maxi Rodriguez (o mais interventivo, com cinco passes) no centro de tudo.

Com a bola nos pés de Saviola, é como se a Argentina engrenasse uma velocidade superior: Riquelme – o Maradona sem sorriso, como um dia lhe chamou Valdano – devolve a tabelinha de primeira, com a parte exterior do pé direito, e Saviola é ainda mais rápido a abrir para Cambiasso, que avança pelo corredor central. A conclusão do lance ilustra as virtudes de um ponta de lança inteligente. Crespo é o nono e último jogador da Argentina a entrar na ação, é fá-lo de duas maneiras. Primeiro, com um movimento em diagonal que o afasta da baliza e arrasta a marcação de Mladen Dudic, abrindo um corredor para a entrada de Cambiasso. Depois, com um subtil toque de calcanhar direito, a pôr a bola no caminho do médio.

Operário na função e aristocrata na forma como a exerce, Cambiasso responde à altura da linhagem argentina no momento de rematar a faena: arranca entre Gavrancic e Krstajic e baixa o centro de gravidade para, com um movimento lateral da perna esquerda, fazer a bola subir o estritamente necessário, fora do alcance do guarda-redes Jevric. Passaram-se exatamente 56 segundos desde que Maxi Rodriguez fez o desarme a Kezman e nunca um jogador sérvio esteve sequer perto de tocar na bola. Foi assim:

Depois do golo de Cambiasso a Argentina continuou a jogar divinamente. Maxi Rodriguez fez o 3-0 antes do intervalo, Crespo e o suplente Tevez construíram a goleada na segunda parte. Depois, a dois minutos do fim, um jovem Lionel Messi, a estrear-se em Mundiais, aproveitou para marcar o seu primeiro golo na competição, fixando o 6-0 final. Escrevia-se História em Gelsenkirchen. Talvez por isso, o jornalista e escritor argentino, Juan Sasturain, apaixonado por futebol, não se conteve. Empolgado, substituiu a crónica pedida por um poema, escrito a quente e publicado no diário Página 12. Terminava assim:

Esto de Gelsenkirchen, imagino/

crecerá con el tiempo, como acaso/

mejoran los recuerdos y el buen vino/.

Nada podrá eclipsar ese pedazo/

de gol monumental, bordado y fino,/

tras veinticinco toques, de Cambiasso»

Tinha razão: já passaram quase dez anos e o golo de Cambiasso continua a crescer com o tempo.