Artigo originalmente publicado no Maisfutebol a 29 de abril de 2015. Recuperado no dia da morte de Johan Cruijff, 24 de março de 2016

Mesmo dando de barato as últimas duas décadas, em que se dedicou exclusivamente ao papel de guru e opinion maker, sempre apostado em provocar e furar consensos, os contributos de Johann Cruijff para a história do futebol europeu são tantos e tão variados que o mais difícil é ficarmos só com um.

Desde o aparecimento como avançado velocista no Ajax, em meados da década de 60, até ao fim do percurso de treinador, trinta anos mais tarde, no Barcelona, a sua carreira é pontuada por pérolas semeadas a intervalos regulares. Numa primeira fase, fundem técnica, agilidade e rapidez. Depois, nos anos finais como jogador, e na transição para técnico, convertem-se em inteligência, provocação e atrevimento.

O mais célebre exemplo dessa segunda fase é o penalti a dois toques que combinou com Jesper Olsen, em 1982 - e que na verdade foi uma adaptação de um gesto do belga Rik Coppens, 25 anos antes. Mas disso já se falou com muito a-propósito neste trabalho.

O que nos traz aqui, desta vez, é o primeiro Cruijff, aquele que surpreendia defesas pela rapidez e agilidade, e que já nessa altura tinha tanto de líder como de talentoso, assumindo sem reservas o papel de treinador em campo. Basta, aliás, ver algumas fotos de época para perceber que o dedo apontado a indicar aos companheiros o que havia a fazer sempre o acompanhou, fosse qual fosse a camisola:


no Ajax...


na Holanda...


no Barcelona...


e até na reforma.

Ora é o período no Barcelona que cimenta definitivamente o mito de Cruijff, numa época em que não havia possibilidade de as proezas dos maiores craques nos entrarem regularmente pela casa dentro - como acontece agora, duas vezes por semana, com Cristiano Ronaldo e Messi. Quando trocou Amesterdão pela Catalunha, no verão de 1973, para fazer companhia ao seu antigo mestre Rinus Michels – enquanto o clube holandês negociava o seu passe com o Real – Cruijff já tinha três Taças dos Campeões no bolso e já era, sem margem para dúvida, a maior figura do futebol europeu desse tempo. Mas o desafio a que se propunha, reforçado pelo rótulo de transferência mais cara da história era duplamente exigente: tornar-se uma marca global e, ao mesmo tempo, satisfazer a fome de títulos de um clube que não era campeão há 13 anos, e parecia sufocado pela concorrência dos gigantes de Madrid.

O franquismo jogava um papel nessa subalternidade, e os jogos de poder na federação espanhola também. Mas, verdade seja dita, também faltava qualidade ao Barcelona. E faltava-lhe, acima de tudo, uma liderança iluminada em campo, que Cruijff, por questões burocráticas, não pôde ser nas primeiras semanas dessa época de estreia.

Só em finais de outubro o ídolo do Camp Nou pode mostrar-se aos adeptos em jogos oficiais: tinham passado sete jornadas, ao fim das quais o Barcelona ocupava um lugar na zona de descida, só com uma vitória. Mas a goleada ao Granada (4-0), com dois golos do holandês anunciava uma mudança radical: fora de campo, o feitio rebelde e egocêntrico de Cruijff casou na perfeição com o espírito reivindicativo dos catalães. Lá dentro, as peças encaixaram como por magia: Michels fazia a linha, Cruijff apontava o dedo, marcava e dava a marcar.

Por alturas do Natal, quando o Barcelona recebeu o At. Madrid, campeão em título, a série de sete jogos sem perder já era um sinal dos novos tempos. E estes confirmaram-se nessa noite de 22 de dezembro, quando Cruijff entendeu dar uma prenda de Natal a todos os adetos de bom futebol.

Foi em cima do intervalo, com 44 minutos jogados, que a magia do holandês desequilibrou as coisas: após um cruzamento de Rexach, na direita, a bola sobrevoou a área, fora do alcance do guarda-redes Miguel Reina (pai do internacional Pepe Reina). Fora do alcance, também, de Marcial e do peruano Sotil, os parceiros habituais de Cruijff no ataque. E então, vindo de fora do enquadramento, Cruijff projetou-se no ar para, de um ângulo improvável, fazer contacto com a bola.



O golo:



Foi um toque de recurso, com a parte exterior do calcanhar direito, numa extensão de kung-fu, acentuada pelo insólito movimento de coice, única maneira de fazer a bola tomar a direção da baliza, fora do alcance de Reina. O gesto pode parecer banal para os dias de hoje, em que os Ibrahimovic da vida têm todos os golos filmados em multicam e altíssima definição. Mas, na altura, foi simplesmente revolucionário. E entrou de tal forma no imaginário dos adeptos culés que, mais de 30 anos passados, ainda é uma das memórias mais referidas no documentário « En un momento dado», que homenageia o impacto de Cruijff na Catalunha.



Surgido numa altura determinante do jogo, o golo kung-fu levantou o Camp Nou em peso. Mas fez muito mais do que isso – mudou a relação de forças na Liga espanhola, abrindo caminho à derrota do campeão nessa noite (2-1) e embalando o Barcelona para uma série ainda mais impressionante. Desde a estreia de Cruijff, na goleada ao Granada, foram 24 jogos sem perder, rumo a um título de campeão garantido a cinco jornadas do fim. O golo a Reina deu razão de ser à alcunha mais óbvia - mas Cruijff, além de ser o holandês voador, era muito mais do que isso. Um génio em estado puro, que, por exemplo, em fevereiro desse ano liderou em campo a demolição do Real Madrid, no Bernabéu, com uma «manita» que ecoou por toda a Europa.

Os 5-0 ao Real Madrid, em 1974:

 

No fim dessa Liga, com o Barcelona campeão, 14 anos depois, Cruijff foi para os relvados alemães apontar o dedo e encantar o mundo, repartindo a liderança da laranja mecânica com o inevitável Rinus Michels. Uma das melhores seleções de todos os tempos exibiu, nesse Mundial 1974, asas que faziam sonhar qualquer entusiasta de futebol.  Parecia o início de um ciclo de grande domínio do Barcelona, mas com Cruijff as histórias nunca foram simples. Nas épocas seguintes, apesar de desempenhos brilhantes da sua estrela, os blaugrana ficaram-se por uma Taça do Rei, em 1978. Em conflito aberto com os dirigentes, com sérios problemas financeiros pelo caminho, Cruijff trocou nesse mesmo ano o Camp Nou pelos dólares do futebol norte-americano.

Foi preciso esperar dez anos pelo seu regresso, como treinador, em 1988, para o Barça se tornar uma potência dominadora de pleno direito - o prolongamento de um voo iniciado nessa noite de dezembro de 1973, que ainda não aterrou.