De Coluna sempre se elogiou a personalidade forte, a liderança serena ou a lucidez com que, no centro da ação, impunha os vários ritmos necessários a uma equipa. Porém, porque o tempo desfoca as memórias mal sustentadas em imagens, poucas vezes se lhe atribui uma assinatura personalizada. Sendo verdade que a sua influência nunca foi fácil de resumir em números, muito menos em vídeos de minuto e meio, falta à nossa ideia de Coluna um movimento, drible ou passe com certificado de autoria, que grite o seu nome em maiúsculas, como as explosões de Eusébio.

E, no entanto, não só existe um momento que deveria fixar o seu nome na História do futebol, como esse lance – o terceiro golo ao Barcelona na final da Taça dos Campeões de 1961 - ilustra uma das caraterísticas que ajudaram a fazer de Mário Esteves Coluna um dos grandes médios de todos os tempos.

Admitindo que já não há muito suspense à volta de um golo com 53 anos de idade, podemos começar pelo fim, por uma vez. Nessa tarde, Coluna fez o 3-1 para o Benfica, no 55º minuto da final de Berna, com um remate de fora da área, na zona da meia lua. Vão ver com os vossos olhos mais à frente, mas o retrato robot fica feito: de pé direito, rasteiro, cruzado para o canto direito do guarda-redes, com a bola apontada à rede lateral. Esta imagem de jornal dá uma primeira ideia:

 

Talvez esta seja boa altura para lembrar que Coluna pertence a um clube de elite particularmente restrito: o de jogadores que marcaram em mais de uma final ganha da Taça/Liga dos Campeões. Apenas um ano depois, mais ou menos na mesma zona, somente cinco minutos mais cedo, voltou a marcar o terceiro golo do Benfica na final com o Real Madrid. Foi assim. Sinais particulares do suspeito: de pé direito, rasteiro, cruzado para o canto direito do guarda-redes, com a bola apontada à rede lateral.

Podia ser coincidência, talvez não fosse: somente quatro dias depois dessa segunda final, Coluna abriu o marcador pela selecção portuguesa diante do Brasil, no estádio Pacaembu. À terceira, poupo-vos a descrição, vejam pelos vossos meios aqui. Se isto não é uma assinatura personalizada...

Uma cabeçada providencial

Agora é altura de voltar ao estádio Wankdorf, em Berna, nesse 31 de maio de 1961, para recordar um incidente esquecido na primeira parte dessa final: aos 9 minutos, num violento choque de cabeças com Vergés, Coluna caiu inanimado e esteve quatro minutos a receber assistência fora do campo. A partir do momento em que regressou, mais líder do que nunca, não voltou a discutir bolas altas com os adversários: passou a furtar-se ao choque, procurando atalhos por onde pudesse fazer emboscadas. Como a que vai mudar a história do futebol português e europeu, daí por uns minutos.

Agora um enquadramento tático, para lembrar que esse Benfica, de Bela Guttmann, ainda não se tinha rendido às virtudes do 4x2x4. Tal como o Barcelona, do outro lado, organizava-se numa espécie de WM em que o quadrado do meio-campo se dividia em apoios defensivos (Neto e Cruz) e dois interiores de ataque (Coluna e Santana). Santana, que no ano seguinte daria o lugar a Eusébio, era quem fazia mais aproximações a José Águas, enquanto Coluna era o elemento de ligação com a defesa, recuando para pegar na bola e aumentar o raio de ação.



Por fim, o registo de uma evidência: embora o Benfica já estivesse a vencer por 2-1 nesse decisivo 55º minuto, raras vezes uma equipa tinha sido tão ajudada pela fortuna como até aí. Ainda antes do minuto em que Coluna reservou o seu lugar na história, o Barcelona já tinha feito 18 remates, dos quais sete foram defendidos por Costa Pereira, e dois salvos em cima da linha por Mário João (2 minutos) e Neto (41 minutos). A juntar a isso, o segundo golo encarnado tinha nascido de uma invulgar carambola entre o defesa Gensana e o veterano guarda-redes Ramallets, que fazia nessa tarde o último jogo de uma longuíssima carreira.

Daí até final ainda haveria mais 16 remates catalães, com três deles a encontrarem os postes no caminho. Mas isto não quer dizer, ao contrário da lenda, que o Benfica tenha tido apenas sorte nessa final: teve-a, em doses industriais, mas teve também muito sangue-frio e combatividade. E um momento decisivo de talento, que é o que nos traz aqui.

22 segundos para mudar a história

Estamos então no minuto 55. E tudo começa num longo pontapé de baliza de Costa Pereira, cuja potência de chuto ajudava muitas vezes a equipa a fazer ligação direta com a cabeça de José Águas. Neste caso, não: Garay ganha nas alturas e cabeceia para a frente, onde Cruz corta o lance e entra na dividida com Vergés. Com a aura de um marechal de campo, Coluna espera no grande círculo que a bola venha ter com ele. Depois arranca.

Apesar de sugerir uma falsa lentidão no início dos movimentos, o Monstro tem uma passada invulgarmente larga quando em velocidade de cruzeiro. Bastam-lhe quatro toques para deixar Vergés para trás e chegar à entrada da área. Vê Cavém solto na esquerda e toca-lhe a bola. Depois, como quem respeita uma barreira invisível, evita a área: vai por um atalho paralelo e fica à espera.

Embora capaz de usar o pé esquerdo, como no lance em que ofereceu o primeiro golo a José Águas, Cavém preferiu puxar a bola para o direito, enquanto preparava o cruzamento longo para a cabeça do capitão. Pressionado por Gensana, Águas foi rápido a perceber que não tinha hipótese de cabecear com perigo e amorteceu a bola para trás, num parábola alta que vai cair na meia lua. E  aí está Coluna, o homem que aos 25 anos já conhecia todos os atalhos do jogo. Está de frente para a lateral, em paralelo com a linha de área. Por isso, tem de recorrer a uma torção de corpo para desenhar o vólei perfeito. O tal, rasteiro, cruzado, para o lado direito do guarda-redes e apontado à malha lateral. 

Desta vez não há sorte à mistura: foi tudo pensado para ser assim. Entre o pontapé de baliza de Costa Pereira e a torção de corpo que põe o 10 do Benfica na História, passaram 22 segundos, que podem ser dissecados aqui. Mas talvez este clip da TV espanhola seja ainda mais feliz na forma como capta o momento decisivo em que Mário Coluna se tornou eterno e o futebol português perdeu o medo de ganhar.