Há momentos tão sublimes que são capazes de suspender o tempo e mudar-lhe as referências. Acontecem com alguma frequência em certas formas de arte. E, muito mais raramente, num ou noutro jogo de futebol abençoado pelos deuses. São percetíveis através da TV, mas têm um efeito incomparavelmente mais potente quando presenciados ao vivo. Talvez por causa do silêncio arrastado que precede a explosão, a momentânea falta de ar perante o que se adivinha a seguir, o botão de pause coletivo, a pôr emoções entre parêntesis. Tive o privilégio de testemunhar alguns desses momentos - e a oportunidade de dissecar dois deles, este e este. Mas ter chegado à 27ª edição desta rubrica sem ter ainda falado n’O Passe é um acidente que, decididamente, não consigo explicar.

O passe

Mesmo as carreiras mais gloriosas têm marcos incontornáveis que ajudam a defini-las. O golo de Van Basten à URSS, por exemplo, será sempre conhecido como o golo. O lançamento de Michael Jordan nos play-off de 1989, contra os Cavaliers, ficou na história do melhor atleta de todos os tempos simplesmente como the shot.

Na carreira de Rui Costa há três desses marcos incontornáveis: uma exibição (todo o Portugal-Inglaterra do Euro 2000); um golo (o 2-1 no Portugal-Inglaterra, Euro 2004) e um passe. Um passe, não: o passe. Foi a 26 de novembro de 2002, no Giuseppe Meazza, num Milan-Real Madrid para a Liga dos Campeões. Enviado do Maisfutebol, pude ver, na bancada de imprensa, como o tempo se suspendeu, como os 75.777 espectadores sorveram o ar e como, no silêncio arrastado que precede a explosão, o pé direito de Andrei Shevchenko carregou de novo no botão de pause e fez o tempo retomar a marcha.

Rui Costa comemorando  o passe

Passagem de testemunho

Jogava-se a primeira jornada da segunda fase de grupos na Liga dos Campeões. Ainda não se sabia, mas aquele jogo representava a passagem de testemunho entre o campeão europeu em título – o Real Madrid de Figo, e principalmente deste golo de Zidane – e o futuro campeão.

E é justo sublinhar que esse Milan, treinado por Carlo Ancelotti, era um fenómeno de coabitação de talento. Um ano antes da chegada de um furacão chamado Kaká, e com Pirlo no banco de suplentes (!) só nesse onze inicial tínhamos Rui Costa, Rivaldo e Seedorf no apoio a Shevchenko – que aos 26 anos, na quarta temporada de rossonero, estava no auge dos seus dotes de matador.

O Milan, que com Ancelotti celebrizou o figurino de árvore de Natal, em 4x3x2x1, organizava-se nessa altura numa espécie de 4x3x1x2, com Rui Costa a fazer de «1», e com Ambrosini e Gattuso a assumirem o trabalho pesado. Seedorf era o elemento de ligação entre os operários e os criativos. Na frente, Inzaghi ou Rivaldo revezavam-se no apoio a Sheva, o melhor avançado do calcio.

Três dias antes, a equipa até tinha ganho ao Inter, no dérbi da Madonnina, com Rui Costa e Shevchenko no banco. Mas na receção a um super-Real Madrid, privado de Ronaldo, mas com Zidane, Figo, Raúl e Roberto Carlos em pleno, o Milan vestiu o traje de gala e relançou a dupla de ilusionistas. O jogo tinha para os portugueses o aliciante particular de pôr frente a frente os dois maiores talentos da nossa geração de 1972 – no caso, dois amigos fora dos relvados, que se saudaram de forma calorosa antes do apito de Urs Meier dar início às hostilidades.

O veneno da serpente

Este teria sempre sido um belíssimo jogo, mesmo que não nos tivesse dado o passe. O Real, com Figo bem manietado na faixa direita e Zidane no centro de todas as movimentações, jogava em tabelinhas sucessivas, procurando servir Raúl e Morientes na área. O Milan, mais retilíneo nos desenhos, alimentava-se a golpes de Rui Costa e com as arrancadas de Seedorf. Shevchenko, esse, ia passando ao lado dos acontecimentos, aproveitando para refinar o veneno da serpente.

Era um jogo de ritmo alto e de enormes proezas – uma das quais a forma como a velha dupla central do Milan, formada por Maldini (35 anos) e Costacurta (37), foi metendo no bolso os dois avançados do Real, tornando estéril o carrossel de Zidane. Sem golos, mas com a equipa de Del Bosque a puxar dos galões e a assumir o controlo dos ritmos e da bola, a primeira parte estava perto do fim. Foi por volta dos 35 minutos que a inteligência de Sheva destilou as primeiras gotas de veneno, percebendo onde teria espaço para morder: aproveitando a confiança crescente dos espanhóis e o crónico adiantamento de Roberto Carlos, o ucraniano começou a fixar-se junto à lateral esquerda do Real, arrastando a marcação do jovem Pavón. Helguera era o outro central merengue, e entre a dupla começava a cavar-se um fosso cada vez mais amplo.

Aos 40 minutos, depois de uma recuperação de Ambrosini, a bola chegou aos pés de Rui Costa, nas imediações do círculo central, com a equipa do Real ainda desorganizada. Se, como dizia Cruijff, é a rapidez de pensamento que faz com que um jogador pareça rápido, poucas vezes a velocidade de raciocínio do número 10 do Milan foi tão bem ilustrada como nesse lance: enquanto o scanner mental dos adversários, espectadores e jornalistas procurava identificar os pontos em movimento das camisolas do Milan - Seedorf ligeiramente sobre a esquerda, Rivaldo no círculo central, todos os outros muito atrás da linha da bola – já Rui Costa tinha antecipado a diagonal de Shevchenko e traçado, com o bisturi do seu pé direito, a incisão de 50 metros que ia abrir o jogo a meio.

E enquanto 75.777 espectadores suspendiam a respiração, a trajetória iluminada daquele passe permitia a Shevchenko ganhar as costas a Pavón, a frente a Helguera e, com apenas um toque para a receção orientada, deixar a bola à medida do remate de pé direito, à passagem da linha da grande área, de forma a cortar pela raiz os efeitos da rápida saída de Casillas.

Ouçam o delírio do narrador italiano e percebam o significado desse golo: foi o decisivo momento de afirmação internacional de uma grande equipa. O jogo acabou 1-0 e um futuro campeão europeu nasceu nessa noite: seis meses depois viria a confirmação, em Old Trafford, numa final com a Juventus indigna da grandeza desse Milan. Nove meses mais tarde, seria a Supertaça Europeia, conquistada diante do FC Porto, com mais um golo fabricado pela dupla.

Shevchenko e Rui Costa na Supertaça Europeia

Na origem de todo esse percurso, a diagonal com uma ideia dentro, do pé direito de Rui Costa para o pé direito de Shevchenko. A mais bela das 65 assistências que o médio português fez com a camisola rossonera.

Veja aqui um resumo do jogo.