Antes de Cristiano Ronaldo houve Ronaldinho Gaúcho. E antes deste, houve Ronaldo, o fenómeno, que o mundo começou a conhecer em 1994, como mascote não utilizada do Brasil campeão mundial. Mas a dinastia não tinha começado aí: dois anos antes, um outro Ronald, louro e sem «o» no fim, assinou em Wembley, à patada, um dos mais simbólicos pontos de viragem na história do futebol europeu.

Foi a 20 de maio de 1992, e é difícil imaginar como tudo era tão diferente nessa altura – o Barcelona nunca tinha sido campeão europeu e julgava ter razões para acreditar numa maldição histórica a esse respeito. Johan Cruijff era ainda, com 45 anos, um treinador jovem e ambicioso, a tentar conseguir nos bancos o estatuto que tinha atingido como jogador. E, talvez ainda mais significativo para o futuro do futebol, essa foi a última vez que se jogou uma competição chamada Taça dos Campeões Europeus. No ano seguinte, a pressão dos patrocinadores e das TV levaria a que o balão de ensaio desse ano, com uma inédita fase de grupos antes da final, desse origem à Liga dos Campeões.

Tudo isto mudou com o pontapé de Koeman. Mas antes de aí chegarmos, a esse minuto 112 da final da Taça dos Campeões, entre Barcelona e Sampdoria, convém enquadrar a história desde central alto e louro, a que a Federação Internacional de História e Estatística, IFFHS, ainda hoje atribui o título de defesa mais goleador de todos os tempos.



Filho de um antigo internacional holandês (Martin) e irmão mais novo de outro (Erwin), Ronald começou a formação no Groningen, mas aprendeu os conceitos básicos no Ajax, onde, entre 1983 e 1986 se cruzou pela primeira vez com Cruijff. Aliciado pelo PSV em 1986, foi com a camisola do clube de Eindhoven que se tornou um fenómeno internacional: pelos dotes de organizador da defesa, que compensavam uma evidente lentidão, mas principalmente pelo pontapé temível, com a bola parada ou em movimento, que fazia dele um dos grandes argumentos ofensivos da equipa treinada por Guus Hiddink – e lhe permitiria marcar 14 golos em 78 jogos pela seleção.

A sua fama era tal que, quando o PSV decidiu a final da Taça dos Campeões Europeus com o Benfica, em 1988, a dupla Toni-Jesualdo Ferreira não teve dúvidas em pedir a Rui Águas, ponta de lança dos encarnados, que marcasse Koeman pelo campo todo. «Nunca vi nada assim! A meio do jogo perguntei-lhe: gostas de jogar assim? De Ir comigo para todo o lado? e ele respondeu: faço o que me pedem, é o meu trabalho» », desabafou mais tarde o holandês ao Maisfutebol, no livro Sport Europa e Benfica. A estratégia deu resultado em parte, já que os seus remates nunca ameaçaram a baliza de Silvino. Mas não impediu que o PSV vencesse essa final nos penaltis, com Koeman a conhecer o primeiro momento de glória internacional, prolongado um mês mais tarde com a vitória da Holanda no Campeonato da Europa.


Koeman marca à Holanda na meia-final de 1988

Por essa altura os adeptos de futebol já não tinham dúvidas: Koeman era um dos maiores especialistas mundiais na marcação de livres, quase sempre em força. E colhia os frutos dessa reputação também na marca de penáltis, onde, por hábito, costumava esperar pelo movimento do guarda-redes para depois optar, friamente, por um remate colocado, sem grande potência.

Mas Johan Cruijff via nele mais do que um defesa goleador: o técnico holandês tinha começou a revolucionar o futebol do Barcelona nesse mesmo verão de 1988, e não teve dúvidas sobre qual a pedra em redor da qual iria organizar a sua defesa de três unidades, base de um 3x3x2x2 que viria a mudar a face do futebol espanhol. Em 1989, Koeman chegava ao Camp Nou para seis temporadas de grande sucesso e a revolução punha-se em marcha: com Tintin como referência defensiva, o primeiro ano foi de adaptação, mas o segundo trouxe o primeiro de quatro títulos de campeão, e ainda uma final da Taça das Taças, perdida para o Manchester United.

Reza a lenda que foi depois dessa final, perdida em Roterdão – Koeman marcou de penálti o único golo catalão – que Cruijff e o seu staff começaram a fazer contas à temporada seguinte. Na Alemanha, o campeão era o surpreendente Kaiserslautern, que já estava a perder os melhores jogadores para o insaciável Bayern. Em Itália, a não menos surpreendente Sampdoria deixara Milan e Juventus para trás. Em Inglaterra, era um Arsenal ainda sem dimensão internacional a representar a Liga. E, percorrendo a lista de potenciais adversário, de país em país, Cruijff convenceu tudo e todos de que 1992 seria o ano certo para acabar com a maldição.

A sua intuição estava correta: deixando pelo caminho Hansa Rostock, Kaiserlautern e depois, na fase de grupos, Sparta Praga, Dinamo Kiev e Benfica (0-0 na Luz, 2-1 em Camp Nou) o Barcelona chegava à terceira final da sua história, frente a uma Sampdoria treinada pelo veterano Vujadin Boskov - embora o sueco Eriksson já tivesse acordo para deixar o Benfica no final dessa época.

Os italianos tinham a dupla Vialli-Mancini e o veterano brasileiro Toninho Cerezo como principais cartões de visita. Mas esse Barcelona de 1992 tinha muito mais do que isso. Numa altura em que cada equipa só podia inscrever três estrangeiros, tinha o defesa mais goleador do planeta, Koeman, o esquerdino mais temperamental e desequilibrador do momento – o búlgaro Stoichkov – e um dos criativos mais tecnicistas e refinados de todo o futebol europeu, o dinamarquês Michael Laudrup.



Tinha ainda, alguns metros à frente de Koeman, um jovem médio de 21 anos, não especialmente rápido, nem forte, nem driblador, mas que, com uma inteligência desarmante, punha a equipa a girar em seu redor, traduzindo as ideias de Cruijff em passes e mudanças de ritmo - com tanta influência como as arrancadas do holandês com a camisola 4, lá atrás. O futuro dono dessa camisola 4 chamava-se Pep Guardiola e estava a participar, em Wembley, na primeira de várias finais de Taça/Liga dos Campeões que o aguardavam - no relvado ou no banco de treinadores, à imagem do seu mentor holandês.

O jogo foi intenso e de alta qualidade, muito mais do que o 0-0 no fim dos 90 minutos, deixava supor a quem não o tivesse visto. O Barcelona estava a ser ligeiramente melhor, e Stoichkov acertou no poste a meio da segunda parte, mas a Sampdoria respondeu sempre com perigo, especialmente pelo veloz Lombardo. As ocasiões sucediam-se, numa baliza e noutra, como se pode ver neste resumo

Estava a ser uma grande final, apesar do nulo no marcador quando, aos 112 minutos, Laudrup inventou um passe interior para Stoichkov, que de costas para a baliza procurou o apoio de Eusebio. Invernizzi procurou antecipar-se e fez um carrinho que, por entre vários ressaltos, acabou por deixar a bola presa no solo. O desespero dos italianos, ao verem o alemão Schmidhuber assinalar falta, foi imediato. Com Stoichkov e Koeman no onze, as probabilidade de golo eram altíssimas. Vialli, que tinha acabado de ser substituído, não se conteve e, no banco, tapou a cabeça com a camisola, antecipando o pesadelo que aí vinha.

​Enquanto os italianos rodeavam o árbitro, Guardiola, frio e impassível, como sempre, aproximou-se e avaliou a situação com Stoichkov. O búlgaro fez-lhe sinal de que tudo estava controlado. A Sampdoria ia levando uma eternidade a conformar-se e a organizar uma barreira, obrigada a cobrir as duas possibilidades: ou o arco do pé esquerdo de Stoichkov ou a reta teleguiada do pé direito de Koeman. Seja qual for o eleito, é um dos melhores especialistas de bola parada em todo o mundo. Mas a colocação da bola, ainda a uns sete metros da linha de área, parece dar vantagem à potência de Koeman.

Egocêntrico mas inteligente, Stoichkov reconhece a evidência e resigna-se a cumprir o papel secundário: chama Bakero para o seu lado, e, quando Schmidhuber apita, dá um toque curto na bola, que Bakero imobiliza. Embalado como uma locomotiva, Tintin Koeman projeta o pé direito para um pontapé tão preciso quanto poderoso: a bola passa no espaço entre os dois últimos homens da barreira, pelo lado direito de Pagliuca que só a vê tarde de mais. É o lado da baliza que o guarda-redes tem de cobrir, mas esta foto mostra que a tarefa era pouco menos do que impossível: o míssil esbranquiçado que sai do pé de Koeman confunde-se com as camisolas dos italianos e só ganha forma definida muito perto do guarda-redes.

 


A estirada é inútil, e Koeman inicia uma corrida frenética, rumo à bandeirola de canto, para festejar o golo mais importante da sua vida engolido pelos abraços. Cruijff, seguro de que a vitória não foge, promove então um gesto simbólico: substituindo de imediato o jovem Guardiola para permitir ao veterano Alexanco (36 anos) erguer o troféu.

31 anos depois da final perdida para o Benfica, seis anos depois do pesadelo vivido em Sevilha, na segunda final com o Steaua Bucareste, o Barcelona quebra a maldição e chega pela primeira vez ao topo da Europa. Cruijff, o revolucionário, volta a pôr a mão no troféu que tinha erguido 20 anos antes como jogador - e ganha direito à imortalidade no coração dos adeptos culés. A equipa, que viria a ser reforçada em 1993 com o fabuloso Romário, ganha direito a alcunha: the dream team, assim mesmo, à inglesa, para dar uma medida do seu impacto global.

É irresistível pensar nas implicações daquele pontapé. Sem o golo de Koeman talvez não houvesse a lenda de Cruijff, e sem a lenda de Cruijff, dificilmente haveria La Masia, pelo menos com os princípios que a celebrizaram na viragem para o século XXI. Sem esta La Masia, haveria sensibilidade para perceber a dimensão de talentos tão pouco convencionais como Xavi, Iniesta e Messi? Sem esse golo, e sem essa Taça, até que ponto teria sido diferente o percurso de Guardiola, nos relvados e nos bancos? E até que ponto o Barcelona teria tido condições para erguer o troféu mais quatro vezes 2006, 2009, 2011 e 2015?

Vale a pena ver, e rever, o remate de Koeman. Não será, por certo, o melhor golo de uma final da Taça dos Campeões. Nem sequer o melhor na grandiosa carreira do holandês pé-canhão. Mas poucos pontapés assinalaram tão claramente como este uma encruzilhada do futebol europeu, antes de dois rolos compressores chamados Champions League e Bosman mudarem tudo o que até então tínhamos como certo.