«Quando lá cheguei, até parecia mal ao clube ter um jogador proveniente de outra divisão. Naquela altura criou-se a dúvida…. Já não tínhamos dinheiro para o Brasil, para a Colômbia, nem para a Europa.»

Foi desta forma que Rui Vitória começou por descrever o que encontrou em 2011 quando assumiu o comando técnico do V. Guimarães.

O técnico, associado por estes dias a Benfica e Sporting, participou nesta terça-feira num evento sobre futebol, promovido pela Faculdade de Motricidade Humana, em Lisboa, onde falou sobre o treinador português, o futebol de formação e, ainda, os desafios enfrentados na Cidade Berço, num clube que, por força das circunstâncias, teve de alterar o paradigma.

«O Vitória estava mesmo à beira da falência. (…) Começámos a centrar muito o nosso mercado na II Liga, segundas divisões», disse.



A necessidade aguça o engenho e foi assim que o V. Guimarães chegou, por exemplo, a João Afonso, defesa de 24 anos, recrutado no verão de 2014 ao Benfica e Castelo Branco, do Campeonato Nacional de Seniores. «Comecei a ver o João Afonso e reparei que ele fazia tudo o que eu queria para um defesa-central. Demos o aval para avançar com a contratação numa entrevista que ele deu. Disse que gosta muito de ver jogos da formação do [Benfica e] Castelo Branco – mais do que jogos do campeonato inglês. Isso mostra que tem personalidade. Estou a trabalhar com muitos jogadores que não são fora de série, mas que têm alguns requisitos», referiu.

Em quatro anos em Guimarães, Rui Vitória levou a equipa à conquista da sua primeira Taça de Portugal, em 2013. O segredo do sucesso? «Damos tranquilidade e liberdade ao jogador mais novo. (...) E sentimento de pertença desde o início. Envolvemos os jogadores de tal forma naquilo que fizemos com que eles se sentissem parte da solução.»

Ora, o recente sucesso desportivo do clube fez com que alguns jogadores importantes acabassem por rumar a outros destinos. «O Hernâni começou esta época na equipa principal e passado meio ano foi para o FC Porto», lembrou.

Jogadores do V. Guimarães na final da Taça de Portugal em 2013 ganha ao Benfica por 2-1

Vão-se os anéis, ficam os dedos. E a satisfação do treinador. «Há dias vi num site que houve jogadores que evoluíram 1.400 por cento. Quando vemos isto suceder com jogadores sobre os quais se calhar ninguém daria nada por eles, isso é para nós [treinadores] um prazer enorme.»

O técnico socorreu-se de um exemplo: «O Bernard veio de uma academia no Gana. Tinha umas pernas mais finas do que os braços, tipo miúdo cheio de fome [risos]. Mas quando comecei a vê-lo tocar na bola… é algo especial», disse sobre o médio ganês de 20 anos.

«Hoje, qualquer jogador que vá para o Vitória acredita que vai ter sucesso», acrescentou.

O segredo do sucesso? «Damos tranquilidade e liberdade aos jogadores jovens». 

As saídas constantes de jogadores obrigam o treinador a adaptar-se às novas circunstâncias que se vão atropelando umas atrás das outras - uma característica essencial para quem trabalha num país maioritariamente exportador ao nível do desporto-rei: «Essa é uma das grandes capacidades que o treinador português tem de ter: a adaptabilidade. O Guardiola chega ao final da época e diz o que quer. Afina a equipa e dá um retoque. Agora, o Rui Vitória… Uma coisa é escolhermos quem querermos. Outra é estarmos condicionados.»
 
O papel do treinador principal na formação

Mais de uma década depois de ter deixado a carreira de futebolista, Rui Vitória garante que planeou o percurso até aqui: do Vilafranquense, passando pela formação do Benfica, pelo Fátima e pelo Paços de Ferreira até ao V. Guimarães. Foi um percurso feito sem queimar etapas que diz serem necessárias num processo evolutivo. «Na I Liga, muita da papa está feita. Quando vimos de divisões inferiores, se calhar estamos mais bem preparados. Nós [treinadores] devíamos ter um percurso muito mais gradual do que às vezes acontece.»

«Quando fui para os juniores do Benfica, tive convites de clubes da II divisão aqui desta zona [Lisboa]. Mas achei que precisava de saber como é que pensava um jogador de uma equipa grande», disse antes de tecer algumas críticas aos modelos de funcionamento de alguns clubes que, aponta, têm um fosso que separa o futebol sénior da formação. «Criou-se essa separação em Portugal. Devemos aproximar as pessoas, os métodos de trabalho», observou.

Rui Vitória defendeu que o técnico da equipa principal deve estar conectado com a formação – «no topo da pirâmide» – e que esta não deve estar assente em objetivos «resultadistas», ao contrário do que por vezes acontece: «O trabalho não é igual ao dos seniores. A ideia tem de ser formar jogadores. Às vezes vemos equipas de iniciados e juvenis a jogarem muito bem, mas vamos lá a ver quando chegarem aos seniores... Estamos a treinar equipas ou jogadores?»

Nesse sentido, o técnico ribatejano deixou uma sugestão à Academia: a criação de um módulo de treinador para as camadas jovens: «Há que não ter medo de dizer: ‘Eu sou bom a treinar miúdos’. Há pessoas que são especialistas com determinadas idades», frisou.

Numa sala com muitos possíveis futuros treinadores, Rui Vitória alertou que continua a não ser fácil ser-se treinador em Portugal, mas admitiu que a situação é hoje mais favorável do que no passado. «Já se começa a ver alguma continuidade nos clubes. Estou no Vitória há quatro épocas. Há uns anos era como no Brasil: perde-se três ou quatro jogos e troca-se.»