Quando Daniel Bruhl atendeu o telemóvel e ouviu, do outro lado, Niki Lauda aos berros depois de se ver representado no ecrã de aliança no dedo dentro de um carro de Fórmula 1, percebeu que o austríaco não era para brincadeiras.

Ron Howard, o realizador, convenceu Lauda, depois de inúmeras tentativas, a aceitar a rodagem de um filme sobre a sua vida. Mas o tricampeão do mundo queria que fosse perfeito. «Nunca usei aliança durante uma corrida!». E a cena foi filmada de novo.

É este o tipo de realismo que se pode esperar em «Rush», o filme que conta a história da rivalidade entre Niki Lauda e James Hunt na temporada de 1976 da Fórmula 1.

Lauda acompanhou de perto todas as filmagens, levou Daniel Bruhl, o ator que lhe dá vida, ao Grande Prémio do Brasil para lhe mostrar o que era a Fórmula 1 e explicar-lhe por exemplo que não pode, nunca, colocar primeiro o capacete e depois as luvas antes de entrar no carro.

«Estes idiotas não percebem que é mais fácil ao contrário», atirou, em entrevista recente ao «The Telegraph». A mesma onde assumiu que Bruhl até fez um bom trabalho: «Quando vi a primeira vez pensei: m***, aquele sou mesmo eu!»

E o realismo nas interpretações alastra-se para as corridas, percorre os diálogos de bastidores e contamina todo o filme. «Rush» é, de facto, muito mais do que um mero filme de Fórmula 1. É uma narrativa perfeita sobre duas formas muito diferentes de ver a mesma corrida.

O campeonato de 1976

O pano de fundo é o campeonato de 1976. Niki Lauda, da Ferrari, era homem de uma missão, correr, e uma certeza: era o mais rápido de todos. Campeão em título, revolucionara a vertente de engenharia da competição, com conceitos novos. Aparecia como alvo a abater mas parecia estar longe de mais de toda a concorrência.

A McLaren apostava numa cara nova, que chegara à Fórmula 1 pelas mãos de um milionário que criou uma equipa propositadamente para isso. James Hunt substituía Emerson Fittipaldi. Era um inglês conhecido pelo estilo de vida boémio, pouco condizente com os padrões normais na Fórmula 1 e o completo oposto daquilo que Lauda representa e defende.

Hunt arranjava tempo para correr entre todos os seus outros interesses. Lauda mal tinha tempo para outros interesses.

Hunt era o típico «playboy», vivendo de festas, mulheres, bebida e tabaco. Há uma história conhecida que conta que organizou uma orgia com mais de 30 mulheres na noite anterior à qualificação para a última corrida daquele ano. Uma figura que só encontra paralelo, mas em menor escala, em Kimi Raikkonen, admirador confesso do inglês.

Lauda era rigor e velocidade. Batera Fittipaldi no ano anterior e tornara-se a maior figura da Fórmula 1. A temporada estava, até, a correr-lhe de feição. A meio das 16 provas do ano somava 52 pontos, contra 26 de Hunt.

Depois veio o trágico 1 de agosto de 1976.

O acidente

Nurburgring, o conhecido «Inferno Verde», era palco do Grande Prémio da Alemanha. Dia de temporal na mais perigosa pista do calendário. Niki Lauda convoca uma reunião de pilotos para tentar cancelar a corrida. Reforça-se: nesta altura, entrar num carro de Fórmula 1 era o mesmo que arriscar a própria vida. O austríaco perde a causa e a corrida realiza-se.

Hunt na «pole-position», Lauda logo ao lado. Jochen Mass, colega de Hunt na McLaren, assume a liderança ainda na primeira volta, depois de um arranque fantástico. Na segunda, já depois de montar pneus slicks, uma falha na suspensão traseira faz Lauda perder o controlo do carro. Este bate nas barreiras, volta à pista e entra em chamas. Herald Ertl e Brett Lunger não evitam o embate.

Lauda é retirado do carro em chamas por pilotos e assistentes. Sofre queimaduras no rosto, fraturas e é levado para o hospital de Adenau, inconsciente. O mundo da Fórmula 1 fica em suspenso: nunca um campeão do mundo morrera em pista.

O destino parecia traçado. Recebeu, inclusive, a extrema unção. Muito cedo. Agarrou-se à vida, recuperou a consciência e, uma semana depois, já falava.

A corrida? Foi retomada, com vitória de Hunt que encurtou, assim, a diferença para o rival.

O regresso

Muitos julgaram Lauda acabado para a modalidade, mas ele volta. Quarenta e um dias depois! Regressa em Monza, casa da Ferrari. Mais um exemplo, o maior de todos, da vontade louca da vencer.

Faltavam três corridas e Lauda só precisava gerir. Somava 64 pontos, Hunt tinha 47. Mas o austríaco estava, naturalmente, limitado e perdia terreno. Na entrada para a última corrida, em Fuji no Japão, os pontos de diferença já só eram três. O inglês tinha de ganhar ou esperar que Lauda desistisse. Este só precisava acabar na frente de Hunt.

Naquele 24 de outubro a chuva volta. De novo em forma de dilúvio. Mario Andretti, da Lotus, partia da «pole». James Hunt era segundo e Lauda terceiro. A decisão para a corrida é a mesma de Nurburgring: luz verde.

Lauda volta a sentar-se contrariado no carro, completa uma volta e entra para as boxes. A Ferrari fica incrédula, mas o piloto está irredutível: já vira a morte demasiado perto e não iria arriscar mais. James Hunt termina em terceiro, soma quatro pontos e é campeão do mundo com mais um do que Lauda.

James Hunt não voltou a ser campeão na Fórmula 1. Competiu mais três anos até ao abandono. Niki Lauda recuperou o título no ano seguinte, deixou a Fórmula 1 em 1980, voltou dois anos depois e em 1984 festejou o tricampeonato, já na McLaren.

Hoje, Lauda é presidente não executivo da Mercedes, uma voz ativa na Fórmula 1. James Hunt morreu em 1993, vítima de ataque cardíaco, pouco depois de pedir em casamento Helen Dyson, a única mulher que verdadeiramente o prendeu.

Quando assistiu à antestreia mundial de «Rush», Niki Lauda emocionou-se. «Gostava que o James pudesse ter visto este filme, porque tenho a certeza que ia gostar muito». E Lauda tem mesmo razão.

«Rush» percorre a temporada de 1976 e muito mais. Vai às raízes, romantiza, até, a Fórmula 1 do tempo em que as mudanças se metiam com alavanca. É um filme sem heróis nem vilões. Apenas com homens e perspetivas diferentes. E uma mensagem forte: se calhar, ter um rival até pode ser uma bênção.

O trailer de Rush: