Portugal está a dois jogos de chegar à fase final do Europeu feminino. Perto de conseguir algo inédito e que pode ajudar a levar a outro patamar uma modalidade que já percorreu um longo caminho e vem construíndo pontes para crescer. A pensar no Euro 2017 e mais além, um olhar pelo presente, passado e futuro do futebol feminino.

Presente

O selecionador Francisco Neto falou com o Maisfutebol no dia seguinte à vitória sobre a Irlanda, quatro dias depois do triunfo sobre a Finlândia, dois jogos que colocaram Portugal no play-off frente à Roménia. Para dizer, antes de mais, que este ainda não é o fim do caminho. «Não é o culminar, mas é um passo muito importante», diz, lembrando que a seleção, 40ª do ranking da FIFA, veio de trás nesta corrida, partiu do penúltimo pote no sorteio de qualificação: «Portugal é a única equipa do pote 4 que ainda pode ir ao Europeu. Acabámos de fazer o maior número de pontos que já fizemos em qualificações, 13 pontos. Quase ninguém na Europa acreditava que uma equipa do Pote 4 chegasse aqui.»

É um percurso de ambição, afirma Francisco Neto. «Temos o trabalho de uma seleção que iniciou este apuramento e acreditou. Estamos a fazer um crescimento sustentado, temos uma seleção com média de idades bastante baixa. Podemos crescer», observa, para associar o percurso da seleção a um trabalho mais vasto, do qual a seleção é o topo da pirâmide: «Isto não começou há um ano nem dois. Temos a seleção sub-17 que já foi a um Europeu, a de sub-19 também, isto também dá muito aporte à seleção.»

«É um processo evolutivo. Tem havido um aumento do número de jogadoras, de clubes praticantes, de condições de trabalho das nossas jogadoras. Há cada vez mais treinadores a apostar em fazer carreira no feminino, com muita qualidade. Isso reflete-se no espaço seleção», continua, para defender que essse crescimento «representa acima de tudo uma evolução do trabalho que a Federação tem vindo a fazer ao longo dos últimos anos».

Um trabalho transversal. «Os clubes também têm feito esse trabalho e têm conseguido essa visibilidade, os que foram à Liga dos Campeões, o Futebol Benfica, o Orense quando lá esteve também passou. É um caminho para ficar mais próximo das equipas de top.»

Outro olhar. Carla Couto foi 145 vezes internacional por Portugal. Foram 24 anos ligada ao futebol em campo, que prolonga agora, quatro anos depois de ter terminado a carreira, como embaixadora da Federação para o futebol feminino e embaixadora e delegada do Sindicato de jogadores.

«Tem havido um crescimento, não só por parte da Federação, que criou as equipas mais jovens, que vão dar sustentabilidade à seleção principals, mas também pelo facto de mais clubes terem futebol feminino, o que dá a possibilidade de mais meninas poderem praticar, aumenta o número de praticantes», observa em conversa com o Maisfutebol: «A Federação, dentro dos objetivos que tem, tem vindo a crescer, os clubes fazem um grande esforço. O próprio Sindicato tem feito um trabalho diário na visita aos clubes.»

O desenvolvimento do futebol feminino foi aposta assumida pela direção da Federação , que elaborou um plano estratégico com metas definidas e objetivos como duplicar o número de praticantes até 2020, ver todos os clubes nacionais com equipa feminina ou atingir fases finais de Europeus e Mundiais. Nos últimos anos foram criadas competições para escalões mais jovens, a pensar na formação como a base de toda a pirâmide e no alargamento do campo de recrutamento para a seleção, e esta época lançada também a Liga principal renovada, alargada de 10 para 14 equipas e com quatro convites abertos a equipas da primeira Liga do futebol nacional, que foram ocupados por Sporting, Sp. Braga, Belenenses e Estoril.

Os números de praticantes da Federação já apontam para esse crescimento:

«A Liga de elite vai fazer com que os clubes comecem a investir mais. Veio dar mais visibilidade ao futebol feminino. Tudo isto somado faz-nos olhar para o futuro com a esperança de que se vá afirmar de uma vez por todas», diz Carla Couto.

Um caminho que se está a percorrer e no qual um apuramento da seleção pode fazer muita diferença, acredita a antiga jogadora: «Sempre disse que quando a seleção AA conseguisse algo assim as coisas iam mudar. Porque a seleção é a equipa com mais visibilidade, a partir do momento em que comece a afirmar-se irá trazer mais coisas boas para o futebol feminino. É a lei natural do desporto.»

Passado

Há obviamente uma história do futebol feminino em Portugal antes desta. Carla Couto já esteve perto também de chegar ao Europeu. Em 2001 Portugal chegou a um play-off para o Europeu, tendo sido eliminado pela Itália, em 1997 já tinha jogado também a última barreira de qualificação, então afastada pela Dinamarca.

Este é um caminho feito por muita gente, que vem de trás. E de um tempo em que as coisas eram muito diferentes. A evolução foi também de mentalidades. «Mesmo a imagem do futebol feminino mudou», nota Carla Couto, que ainda se lembra do tempo em que se olhava de lado para mulheres que jogavam futebol. «Eram as Maria-rapazes. Era ‘vai para casa, vai coser meias’. O típico comentário das pessoas que iam ver futebol era de descrédito. Isso já não se ouve.»

«Mas nós lutámos, hoje é um caminho percorrido em muitos anos. O que eu passei e o que nós tivemos de passar, superámos isso e hoje é um contexto completamente diferente», observa: «Hoje há muita gente a gostar de futebol feminino. Começamos a ver os estádios com alguma assistência, sem ser só pais. A mim dá-me um gozo enorme.»

A questão da mentalidade e do preconceito pode ajudar a explicar por que Portugal tem ainda um fosso grande no futebol feminino, comparando com muitas seleções europeias, ou vendo também como os países do norte da Europa, onde a questão da igualdade de género está há muito noutro patamar, são tradicionalmente fortes na modalidade

«São outra cultura», observa Carla Couto, acrescentando que a dimensão do fosso se traduz facilmente em números. «Portugal tem vindo a aumentar o número de praticantes. Mas aqui há tempos na Fifpro tivemos uma apresentação da Holanda, onde eles contaram que têm 50 mil praticantes.»

Francisco Neto reforça essa ideia, recorrendo ao exemplo de um dos adversários de Portugal na qualificação, que ficou pelo caminho:  «Temos um número reduzido de praticantes. Temos 2500 jogadoras, a Finlândia tem perto de 40 mil praticantes. No masculino também é assim, nós temos menos praticantes que as equipas de topo, mas a qualidade faz a diferença.» Falamos de países com população semelhante, no primeiro caso, ou bem inferior, no segundo, à portuguesa.

Portugal vai dando passos. «Temos conseguido pequenos feitos que têm valor e feito com que as pessoas olhem para o futebol feminino de uma forma diferente», diz Carla Couto: «O que interessa é que conseguimos ganhar o respeito de toda a gente e estamos a fazer o nosso caminho.»

Sendo que ainda há muito por fazer, acrescenta a recordista de internacionalizações, a pensar num dia em que o profissionalismo, por exemplo, não seja apenas exceção em Portugal. «Conheço bem o futebol feminino, porque o visito diariamente, sei bem aquilo por que passam. Umas porque largaram a família e estão sozinhas num país a realizar o seu sonho, outras que jogam um pouco por carolice.»

«No comité da Fifpro para o futebol feminino andamos agora a discutir o que é ser profissional. Para a FIFA é quem viva exclusivamente daquilo que ganha. Em Portugal acredito que num curto espaço de tempo algumas possam ser profissionais», analisa. Esse processo está no horizonte: «Há atletas em Portugal que vivem exclusivamente do futebol. Não muitas, mas já há algumas a terem um vínculo ao clube, uma remuneração, o que já é um objetivo atingido. Pelo menos que não paguem para jogar e lhes sejam dadas melhores condições de trabalho.»

A evolução vai potenciar a qualidade de base das jogadoras portuguesas, que existe, defende ainda Carla Couto. «Nós não ficamos a dever nada a ninguém em termos de qualidade. Somos latinas. À semelhança dos jogadores portugueses, as portuguesas são por natureza habilidosas. A nível físico é que pecamos. Já há quem faça treinos seis a sete vezes por semana, mas a maioria da realidade é três vezes por semanas ao fim do dia, depois de um dia de trabalho.»

«Temos qualidade inata. Precisamos é de mais e melhores condições. O caminho passa por continuar a investir, continuar a apoiar», diz. «E pelas conquistas internacionais, seleção, Liga dos Campeões. É isso que dá visibilidade.»

Futuro

Portugal tem qualidade. Tem por exemplo, diz Carla Couto, uma jogadora como Cláudia Neto, «que é top do top». A jogar na Suécia, a autora do golo de Portugal à Irlanda, é uma das jogadoras da seleção no estrangeiro, outro factor que espelha a evolução da modalidade. «Não só em Portugal os clubes já proporcionam melhores condições como temos atletas em clubes de referência a nível internacional», reforça Francisco Neto,

Então, quer dizer que na verdade a qualidade da seleção é superior ao seu ranking? Francisco Neto evita uma comparação nestes termos, mas assume que o objetivo é sair de onde está. «Acreditamos sempre que o espaço onde estamos não é o nosso. Queremos estar sempre acima. Nas próximas qualificações iremos encontrar equipas abaixo de nós. O ideal era passar para o Pote 2, para o Pote 1. Sermos presença assídua nos Europeus.»

«É um bocado a história do futebol português. No masculino passou muito tempo até nos enraizarmos nos Europeus e Mundiais. A partir do momento em que conseguimos somos presença regular», diz. E será isso possível a médio prazo no feminino?

«No futebol feminino as presenças nos Mundiais são sempre mais difíceis. O futebol feminino é dominado em grande parte pelas equipas europeias e as vagas são limitadas. Acontece sempre grandes equipas europeias ficarem de fora», nota Francisco Neto. «Mas o Europeu pode ser objetivo a curto e a médio prazo.  Queremos lutar primeiro por este acesso e depois estar regularmente neste tipo de decisão. Ir até ao fim a lutar por algo. O nosso compromisso é essa regularidade, conseguirmos ser muito competitivos regularmente. Foi o que nos propusemos há três anos, reduzir o fosso para as equipas mais fortes, mas ainda não estamos no patamar que queremos.»

Para já há o objetivo de curto prazo, o play-off de outubro para um Europeu que terá na próxima edição 16 equipas, em vez das 12 que disputavam até agora a fase final. Na sexta-feira Portugal há sorteio para decidir quem joga primeiro em casa. Depois vai ser uma eliminatória dividida, acredita Francisco Neto: «Agora são dois jogos num curto espaço de tempo, com viagens pelo meio. É um apuramento de 50/50, com duas equipas que têm as mesmas hipóteses, as mesmas armas. A Roménia fez boa campanha no grupo de qualificação, não se apurou diretamente apenas por um golo. É uma equipa muito competitiva.»

Carla Couto fica a torcer por fora. «Tenho um orgulho enorme no que as minhas colegas fizeram, quero dar os parabéns a toda a comitiva. Ainda não conseguimos nada, estamos a um passo de conseguir, mas acho que é um marco. Agora é um jogo de mata mata, acho que temos tudo para disputar o jogo e inclusivamente ganhá-lo. Conheço-as jogadora a jogadora, conheço a sua qualidade. Podemos atingir o objetivo que não conseguimos comigo, e atingi-lo vai ajudar o futebol feminino.»