Na Sérvia, também na Albânia, muita gente temia que acontecesse algo. Mas o jogo foi sorteado, foi marcado e começou. Não chegou ao intervalo e a UEFA vai ter que lidar com o facto de um jogo ter sido abandonado por uma questão política. O drone que sobrevoou o estádio do Partizan no final da primeira parte, com uma bandeira da «Grande Albânia», acabou com a tranquilidade aparente. Durou pouco. É frágil e não tem fim à vista. Como vamos perceber pelo olhar de dois homens do futebol, um sérvio e um albanês, numa conversa em português. Ljubinko Drulovic estava lá, no Estádio do Partizan. Eduard Abazaj viu a partir de Portugal.

«Desde o sorteio que toda a gente aqui sabia que podia acontecer algo.» Drulovic fala de uma tensão latente e constante: «A política está sempre metida no meio. Existe uma grande rivalidade, podemos mesmo falar em ódio, depois de tudo o que aconteceu há anos nesta zona dos Balcãs.»

Durante alguns minutos, Drulovic acreditou que podia ser apenas um jogo de futebol. «O estádio estava cheio, bom ambiente. O jogo estava bom», recorda ao
Maisfutebol, o antigo esquerdino que jogou no Gil Vicente, FC Porto, Benfica e Penafiel, para relatar depois o que viu e o mundo acabou por ver também: «Quase a acabar a primeira parte, apareceu a bandeira da Grande Albânia. Andou a voar três, quatro, cinco minutos. Quando o Mitrovic, ex-jogador do Benfica, a conseguiu agarrar e foi ao chão, gerou-se uma confusão entre jogadores. Aí instalou-se a confusão no relvado e o árbitro entendeu que não havia condições para continuar.»

«Sabíamos que podiam acontecer incidentes. É uma tensão muito grande. É sempre uma tensão muito alta», insiste Drulovic, a falar das feridas abertas na região dos Balcãs, que levaram à desintegração da antiga Jugoslávia nos anos 90 e que estão longe de sarar.

«As pessoas aproveitam este tipo de situações para coisas que não deviam num campo de futebol», desabafa.

Abazaj, que jogou no Boavista e na Académica, depois de ter chegado a Portugal contratado pelo Benfica, em 1993, também começa por lamentar o que se passou. «O futebol não deve ser misturado com política. É uma vergonha o que aconteceu e pode ser uma tragédia», diz. «Há interesses à volta disto, que têm a ver com ódios.»

O antigo jogador albanês nota como os futebolistas, no dia a dia, conseguem superar as diferenças. «Há jogadores sérvios e albaneses a jogar na mesma equipa, na Lazio, que estavam na terça-feira em campo. Há jogadores que jogam nos mesmos clubes, tomam café juntos. Isto não devia ser usado para algo que transforma o futebol numa questão política.»

Mas foi. Apesar de algumas medidas preventivas. Não havia adeptos albaneses no estádio, para começar, apenas os representantes da comitiva oficial da seleção visitante. Foi acordado assim, diz Drulovic. «Foi proibido. Chegou-se a um acordo: não havia adeptos albaneses no jogo na Sérvia, e não vão adeptos sérvios ao jogo na Albânia.»

Abazaj fala de um processo mais complexo e de um mal estar que se instalou por causa disso. «Durante três semanas estiveram a negociar por causa dos bilhetes, mas a Federação sérvia fez exigências, disse que todos os adeptos que comprassem bilhete tinham que ser identificados.»

São olhares diferentes. Drulovic, sobre o que se passou: «Foi uma grande provocação das pessoas que usaram o jogo para isto. Foi planeado, e foi muito feio.» Abazaj: «Qualquer adepto é livre de mostrar a sua bandeira, a bandeira do seu país.»

Drulovic: «Mostraram um cartaz da Grande Albânia, que não inclui só o Kosovo, inclui também uma parte da Macedónia, é uma questão que envolve outros países, além da Sérvia.» Abazaj: «Não vou pelo caminho que o Kosovo é Albânia, ou que a Albânia é grande ou pequena.»

A bandeira que sobrevoou o estádio de Belgrado alude à ideia de uma «Grande Albânia», que inclui o Kosovo e parte da Macedónia. Tinha o mapa, a palavra Autochtonous e rostos de dois heróis da guerra albanesa pela independência do império otomano, no início do século XX. Mostrou mais uma vez ao mundo como o problema balcânico é profundo e está longe do fim. 

 

A questão centra-se atualmente no Kosovo, que declarou independência da Sérvia e luta pelo reconhecimento internacional. Não é a primeira vez que chega ao futebol. O Kosovo já tem uma seleção, que se estreou sob a égide da FIFA num jogo com o Haiti. Mas há muitos jogadores de origem kosovar spalhados por outras seleções. Na Suíça, por exemplo, que defrontou a Albânia na qualificação para o Mundial 2014, não sem escapar à polémica.

Não é, de todo, a primeira vez que a questão balcânica se cruza com o desporto. Aconteceu várias vezes no futebol no início dos anos 90, ainda antes do eclodir da guerra, em jogos entre equipas croatas e sérrvias: Dínamo Zagreb ou Hadjuk Split de um lado, Estrela Vermelha e Partizan do outro. Aconteceu no basquetebol, na final do Campeonato do Mundo de 1990, também por causa de uma bandeira.



E o futebol serviu de cenário para reavivar tensões, já depois da desagregação da Jugoslávia. Drulovic jogou um desses jogos, um Croácia-Sérvia, em 1999. «Foi bastante quente, lá na Croácia. Mas nunca chegou a este ponto de o jogo ter de ser abandonado. No jogo na Sérvia, no início da segunda parte, falhou a eletricidade e nós protegemos os jogadores da Croácia», recorda, ele que já tinha evocado este episódio ao Maisfutebol, quando as duas seleções voltaram a defrontar-se em 2013.

«Muitas vezes foi usado o desporto, com pena minha», desabafa Drulovic. 

A UEFA introduziu condicionantes políticas no sorteio para o Euro 2016. Separou Espanha e Gibraltar, Rússia e Geórgia, também Arménia e Azerbaijão. Não fez nada quanto a confrontos balcânicos. Agora, vai ter que lidar com o que se passou em Belgrado. Para já, deduziu acusações à Sérvia pela organização do jogo e fala em recusa de retomar o jogo por parte da Albânia. 

A UEFA devia ter evitado este confronto Albânia-Sérvia? Drulovic evita uma resposta direta, mas avança um caminho: «Este tipo de jogo na minha opinião até seria melhor que se jogasse num campo neutro. Ou sem adeptos.» Abazaj aponta o dedo à UEFA, por ignorar a questão do Kosovo. «A UEFA deve tirar ilações. Há 80 jogadores kosovares que jogam em dez seleções do mundo. A UEFA está a sentir cada vez mais dificuldades na gestão dos países, com as novas seleções que sairam da ex-Jugoslávia e da ex-União Soviética.»

O dia seguinte ao episódio do drone foi marcado por acusações e por outra guerra, a da informação. A televisão sérvia noticiou que foi o irmão do primeiro-ministro albanês a lançar o drone a partir do camarote VIP e falou mesmo na sua detenção, ele negou. Circularam mais versões, uma das quais diz que o drone foi lançado de uma igreja ortodoxa perto do estádio. Também que já teria sido reclamada por um grupo nacionalista albanês a autoria do incidente.

No meio de tudo isto, só há um facto claro. As feridas estão abertas nos Balcãs. Fazem parte do dia a dia. Apesar de já ter sido bem pior. «A questão política aqui é uma coisa diária. Muitas pessoas ficaram sem nada, outras perderam familiares», nota Drulovic.

«Está muito melhor do que já foi. Mas ainda é muito cedo para dizer quando vai acabar. Não sei quanto tempo vai passar mais. Vão ser precisos mais alguns anos, mais algum tempo. Existem muitos ódios de parte a parte, não é fácil.»