Alguns clubes não têm dificuldade em escolher o jogador, ou jogadores, mais importantes da sua história: Pelé no Santos, Beckenbauer no Bayern, Cruijff no Ajax, Eusébio no Benfica, os violinos no Sporting, La Maquina no River. Para outros, a figura mais importante será a de um treinador: Bill Shankly no Liverpool, Alex Ferguson no Manchester United, Jock Stein no Celtic, Lobanovsky no Dínamo Kiev. Por fim, outros, mais raros, escolhem um presidente como maior referência à medida que escrevem, ou reescrevem, a sua história: Santiago Bernabéu no Real Madrid, Roman Abramovich no Chelsea ou Pinto da Costa no FC Porto, entre outros.

Já um clube que escolha um diretor desportivo como maior referência, para mais numa história que se estende por 127 anos, se não é caso inédito será, pelo menos raríssimo. E, no entanto, quando na semana passada ficou oficializada a saída do Sevilha de Ramón Rodríguez Verdejo, conhecido no mundo do futebol como Monchi, não foi um, nem foram dez, os adeptos do clube andaluz que partilharam desabafos semelhantes a este:

Sinal destes tempos pós-Bosman, em que a competência no mercado de transferências pode transformar o destino de um clube. Ao contrário do que acontece na maioria dos casos, a lenda de Monchi – assente na milagrosa capacidade de descobrir jogadores excecionais em clubes pequenos e elevá-los ao topo da Europa - começou a construir-se quando pendurou as chuteiras, em 1999. Até aí, tinha assinado uma carreira discreta como guarda-redes do Sevilha, quase sempre como suplente. Mesmo cruzando-se com algumas lendas do futebol mundial como Suker, Zamorano e, acima de todos, Maradona, com quem na época 1992-93 cultivou uma duradoura amizade. É a relação com o argentino que dá origem a algumas histórias fantásticas, como esta que Monchi partilhou em entrevista à revista Jot Down, em setembro de 2015:

«A minha relação com ele tornou-se forte porque Maradona não podia passear a qualquer hora e eu, como era de dormir pouco, saía sempre com ele. Ofereceu-me um relógio Cartier e disse-me: «Não sabes por que to dou?». E eu não fazia ideia. «Não te lembras que uma vez andámos a passear pelas Ramblas em Barcelona?» Acontece que nesse dia eu tinha um Rolex falso, porque não ganhava para mais. Ele elogiou-me o relógio e eu disse-lhe: «Não, Diego é falso. Comprei-o em Ibiza por cinco mil pesetas». Nunca mais se esqueceu e antes de ir embora convidou-me para sua casa e deu-me esta prenda que, claro, ainda guardo. Disse-me: «Toma, para que nunca mais tenhas de usar relógios falsos»

O contacto com estrelas desta dimensão terá ajudado o desinibido Monchi a ganhar desenvoltura para o mundo dos negócios? O certo é que foi ao trocar as luvas pelo blazer e o campo de treinos pelos gabinetes que um guarda-redes banal se transformou num dirigente de primeiro plano.

A festa pela quinta Liga Europa conquistada na era Monchi

Chuva de troféus e 15 anos de craques

Inicialmente convidado para trabalhar como diretor de campo, Monchi foi promovido a diretor desportivo em 2000, numa altura em que o clube tinha voltado a descer de divisão e tinha o plantel em liquidação, para evitar a bancarrota. Monchi conta que a sua relação com o presidente Roberto Alés era de tanta confiança que teria aceitado pintar o estádio se as instruções fossem essas. Não foram: para bem do Sevilha, o ex-guarda-redes suplente herdou a missão impossível de construir um plantel sem dinheiro. Ao fim de um ano o Sevilha sagrava-se campeão da II divisão e voltava à elite, de onde não voltaria a sair nos 16 anos seguintes. O resto é lenda, e os números não explicam tudo, mas explicam muito. Com Monchi ao comando o Sevilha ganhou cinco Taças UEFA/Ligas Europa, duas Taças do Rei, uma Supertaça Europeia e uma de Espanha.

O mérito não foi exclusivo de Monchi, como é evidente: os presidentes que sucederam a Alés, Del Nido e Pepe Castro, encontraram sempre o necessário ponto de equilíbrio entre ambição e bom senso. E treinadores como Caparrós, Juande Ramos, Manolo Jimenez, Unai Emery e Jorge Sampaoli foram capazes de manter a identidade da equipa, em ligação direta com os adeptos e a história. Mas mesmo que os últimos 15 anos do Sevilha tenham sido ensombrados por uma tragédia incontornável - a morte em pleno campo do capitão Antonio Puerta, em 2008 – o ponto comum ao período mais rico em troféus na história do clbe andaluz tem como ponto comum a impressionante galeria de craques, descobertos a baixo custo, transferidos por verbas altas, e substituídos por outros ainda melhores.

Um golpe de vista que, como o próprio Monchi se encarregou de explicar a propósito do processo de prospeção, dá muito trabalho:

Somos 16 e cada um acompanha vários campeonatos. Dividimos o ano em duas partes. A primeira vai de agosto a dezembro, e é dedicada ao que chamo futebol em bruto. Vemos jogos e mais jogos, e com eles engordamos a nossa base de dados. Além disso todos os meses fazemos um onze ideal em todas as Ligas que seguimos. Depois, a partir de janeiro, começamos a segunda fase do nosso trabalho: os jogadores que selecionámos, que costumam ser entre 350 e 400, assumem o protagonismo. Por exemplo, se tivermos Lacazette, seguimo-lo em todos os pormenores. Cinco ou seis elementos da secretaria técnica vão observar jogos do Lyon em circunstâncias diferentes: em casa, fora, contra equipas fortes, contra adversários mais fracos... Assim, obtemos parâmetros reais sobre este futebolista. Em abril, fazemos outra filtragem e ficamos com 150/200 jogadores, entre 15 a 20 por lugar. A partir daí sentamo-nos com o treinador para que ele nos defina o perfil de jogador que procura e, finalmente, a direção desportiva põe nome e apelidos aos seus pedidos» (em entrevista ao ABC, em novembro de 2016)

O processo não estava tão afinado quando tudo começou, mas a linhagem pode ser iniciada por um nome bem conhecido dos portugueses, José Antonio Reyes, revelado com 18 anos e transferido por 30 milhões para o Arsenal, ainda antes de passar pelo Benfica. Mas prossegue com nomes ainda mais ilustres, como Dani Alves (passe vendido por 35 milhões), Sergio Ramos (27 milhões), Jesus Navas (20 milhões), Júlio Batista (20 milhões), Alberto Moreno (18 milhões), Adriano, Saviola, Luís Fabiano, Kanouté, Seydou Keita, Negredo, Medel, Rakitic (18 milhões), Vitolo, Bacca (30 milhões), Deulofeu, Gameiro, Aleix Vidal (18 milhões), Immobile, Jovetic, Nasri ou Kraneviter - além dos internacionais portugueses Taira, Bakero, Makukula, Duda, Beto, Carriço e Diogo Figueiras.

Foi esta amálgama entre jovens talentos projetados, apostas de baixo risco, grandes negócios e jogadores experientes com direito a segundas oportunidades no Sanchez Pizjuán que, em larga medida, explica um saldo impressionante: mesmo nunca tendo conseguido discutir o título com os colossos de Madrid ou Barcelona, a estabilidade do Sevilha (que terminou oito vezes entre os cinco primeiros) e a regularidade na conquista de troféus foram das notas mais salientes na última década e meia do futebol espanhol. Há, claramente, um antes e depois de Monchi, que em termos gráficos, na contabilidade de troféus, se pode ilustrar desta forma:

E, por isso, na conferência de imprensa com que oficializou a saída do clube, no fim desta época, para rumar a Roma, e enquanto Sampaoli o definia como «o melhor da história do clube», Monchi fez a síntese feliz entre o afeto e a razão: «Não é o coração que me bate, é o escudo do Sevilha. Não haverá na história outro diretor que se sinta tão amado pelos seus adeptos.»