O décimo aniversário da morte de George Best, na passada quarta-feira, permitiu, um pouco por toda a parte, evocar a lenda daquela que terá sido, em boa verdade, a primeira estrela pop a calçar umas chuteiras. Pela aura de herói romântico e pela fragilidade de alcoólico inadaptado, que lhe anunciava o destino trágico, Best tornou-se um mito. Maior, até, do que o futebolista genial e imprevisível que os registos documentam:



Mas sobre isso já se escreveu vezes sem conta, a propósito e despropósito do «quinto Beatle». A ideia pode ficar resumida no imaginário de excessos que associamos aos «swinging sixties» - sexo, álcool, patilhas e roupas extravagantes – e ainda em meia dúzia de frases ditas pelo próprio Best –ou a ele atribuídas –, que acabam por lhe definir a personagem, replicada, anos mais tarde, com menos glamour e talento, por figuras como Robin Friday, Gascoigne ou Vítor Baptista.

Eis algumas dessas citações, para virarmos a página e irmos ao que nos traz aqui. Para quem já as conhece, marcamos encontro no parágrafo seguinte, depois do subtítulo.



«Gastei muito dinheiro em bebida, miúdas e carros desportivos. O resto desperdicei»
«Se me obrigassem a escolher entre driblar quatro e marcar ao Liverpool com um remate a trinta metros ou ir para a cama com a Miss Mundo seria complicado. Felizmente pude fazer as duas coisas»
«Em 1969 deixei o sexo e as bebidas e foram os piores 20 minutos da minha vida»
«Nasci com um dom, e muitas vezes isso traz também um lado destrutivo»
«Houve vários jogadores a quem chamaram o próximo George Best. Mas com ele (Cristiano Ronaldo) é a primeira vez que a comparação me lisonjeia»
«Beckham? Não joga com o pé esquerdo, não cabeceia uma bola, não desarma e não marca muitos golos. Tirando isso, não é mau»
«Gascoigne? Uma vez disse-lhe que tinha um QI inferior ao número da camisola. Respondeu-me: O que é um QI? »
«Quando eu morrer as pessoas vão esquecer todas as asneiras e só vai restar o futebol. E se houver uma única pessoa a achar que eu era o melhor do mundo, para mim já chega»
«Dizem que fui para a cama com sete Miss Mundo, mas é falso: foram só quatro»
ou a variante sobre o tema, que só se entende no original: «I used to go missing a lot. Miss Canada, Miss United Kingdom, Miss World…»

O telegrama

Chamando-se a rubrica «Soldados Desconhecidos» é difícil que este texto seja dedicado a George Best, um dos oficiais mais conhecidos e graduados no futebol dos últimos 60 anos. Afinal, como o próprio Best dizia, a propósito da sua batalha com o alcoolismo: «Podia tentar os Alcoólicos Anónimos, mas ainda mais difícil do que deixar o álcool era ser anónimo.»


Best no auge da carreira

O que esta evocação de Best serve é para lançar o verdadeiro protagonista desta história, um homem chamado Bob Bishop que é, entre outras coisas, o autor de um dos telegramas mais famosos da história do futebol - o telegrama que soltou o génio de Best da lâmpada onde estava encerrado. Mas já lá vamos, primeiro as apresentações.

Nascido em 1899, Robert Bishop trabalhou nos estaleiros de Belfast durante mais de 30 anos. Ex-jogador medíocre, foi conjugando a paixão pelo futebol com o trabalho, orientando a equipa dos trabalhadores navais e montando, depois, uma equipa de jovens sub-17, o Boyland Youth Club, cujo estilo combativo foi ganhando uma sólida reputação, que se estendeu a Inglaterra.

Era aí, mais precisamente em Manchester que, nos escombros da II Guerra Mundial, um técnico escocês, Matt Busby, se tinha proposto construir a melhor máquina de futebol da Grã-Bretanha. O projeto passava, entre outras coisas, por uma rede de prospecção em todo o país, com a ambição de ter referenciados todos os talentos dignos desse nome com menos de 17 anos.

Foi essa visão global que fez com que, em 1950, Bob Bishop mudasse de profissão, passando a entrar na folha salarial do Manchester United, com a obrigação de ver o máximo de jogos que pudesse e de enviar relatórios regulares para a sede, onde o chefe dos scouts, Joe Armstrong, tinha linha direta com Busby.

Em 1951, o Boyland Youth Club mandava o primeiro diamante para Old Trafford: John Scott não se impôs nos red devils, mas ainda assim chegaria a internacional, tendo jogado no Mundial de 1958. A linha de montagem começava aí. Busby e Bishop estavam em sintonia sobre o que pretendiam num jogador e o antigo operário naval tinha o dom ambicionado por todos os olheiros: o de ver coisas que mais ninguém via. Dez anos bastaram para que Bishop se tornasse uma figura conhecida em toda a Irlanda do Norte, a saltar de jogo em jogo, com uma beata ao canto da boca e a rosnar incentivos aos miúdos em quem via alguma coisa de diferente.


Bishop e Best

Foi essa fama de visionário que, em 1961, levou até ele um jovem aprendiz de 15 anos, rejeitado duas vezes pelo seu clube do coração, o Glentoran. O miúdo, chamado George Best, era demasiado leve e pequeno para os padrões rudes do futebol de Belfast. Mas Bishop ficou intrigado pela sua agilidade e facilidade de drible. Como a única dúvida dizia respeito à capacidade de aguentar fisicamente o embate com adversários mais crescidos, Bishop decidiu organizar um jogo para sub-17, com Best como intruso. A equipa do miúdo ganhou 4-2, com o magrinho a marcar dois golos e a ficar ligado aos outros. Bishop perdeu as dúvidas que ainda tinha, foi direto aos correios e mandou a Matt Busby um telegrama que fica na lenda: « I think I’ve found you a genius» (acho que vos encontrei um génio).

No dia seguinte, Best chegou a casa, vindo da escola, e encontrou Bishop sentado na poltrona do seu pai. Homem de poucas palavras, foi direto ao assunto: «Queres ir jogar para o Manchester United?», perguntou-lhe. O resto da história conta-se rapidamente: Busby, que tentava reconstruir uma equipa dizimada três anos antes, pelo acidente aéreo de Munique, voltou a confiar no seu olheiro. A tal ponto que não desistiu de Best quando este, ao fim de dois dias à deriva, e com saudades de casa, lhe implorou que o deixasse voltar a Belfast. Umas semanas depois o aprendiz estava de regresso para se tornar um dos nomes mais amados na história do clube, e o protagonista máximo da primeira conquista da Taça dos Campeões Europeus por uma equipa inglesa, diante do Benfica, em 1968.

Quanto a Bishop, continuou, pelo tempo fora, a fazer o que sempre fez: a ver jogos de miúdos em fins de tarde gelados, e a descobrir talentos onde mais ninguém os via. Nunca enriqueceu, e nunca tal coisa lhe terá passado pela cabeça: continuou na folha salarial do Manchester United até à sua morte, já depois de ter completado 90 anos. E no seu registo de serviços constam, entre outros, nomes marcantes como Pat Jennings, Sammy McIlroy ou Norman Whiteside, que em 1982 superou Pelé, tornando-se o mais jovem de sempre a jogar numa fase final de um Campeonato do Mundo.

Numa entrevista ao Belfast Telegraph, pouco antes de morrer, dava mostras de uma humildade desarmante: «Tive muita sorte, o United é um grande clube e foi sempre maravilhoso para mim. Sir Matt Busby teve sempre uma palavra amável a meu respeito, um verdadeiro gentleman», contou, antes de se deter na apreciação a Best: «Soube, assim que o vi tocar na bola, que ia ser uma estrela. Era um rapaz esperto, podia ter jogado mais sete ou oito épocas no topo, mas as coisas complicaram-se, infelizmente», lamentava.


Bishop em 1978, ainda no ativo

O telegrama de Bishop é a história que todos os scouts e prospetores de talentos sonham poder viver um dia – o momento que, por si só, compensa anos a fio em bancadas desertas, a ver jogos anónimos de miúdos, à procura daquilo em que mais ninguém repara. Mas é, também, um sólido tributo à humildade perante a revelação da grandeza: é certo que os profissionais se fazem, com muito trabalho e dedicação. Mas os génios - que no futebol são bem mais raros do que se pensa - apenas podem ser descobertos. Devemos um deles a Bishop, o homem que era capaz de ver para além do óbvio.

PS: Um dos melhores livros de desporto dos últimos anos foi escrito por Michael Calvin. Chama-se The Nowhere Men e conta, precisamente, a rotina destes homens que vivem na esperança, quase sempre vã de um dia encontrarem uma coisa fora do vulgar e poderem mandar a alguém o equivalente tecnológico do telegrama de Bishop. São os soldados de infantaria do futebol de alta competição, fatalmente desconhecidos. E é muito graças a eles que o futebol continua a ser, entre muitas outras coisas «the stuff that dreams are made of ».



Soldados desconhecidos é uma rubrica dedicada a figuras pouco conhecidas que também fizeram a História do futebol.