Foi jogador internacional, prisioneiro de guerra, treinador, dirigente e selecionador. O seu percurso acompanha todas as etapas relevantes na afirmação do futebol como fenómeno de massas incontornável do século XX. E, no entanto, nenhuma destas funções esgotou a importância de Gabriel Hanot, ou o seu impacto no futebol mundial. Porque, indo diretamente ao ponto, foi como jornalista que este francês, nascido em 1899, se tornou um dos maiores visionários na história da modalidade: em 150 anos, poucos fizeram tanto como ele pela sua expansão.

Foi nos anos 50, como editor do L’Equipe e do France Football, que se tornou, sucessivamente, o pai da Taça dos Campeões Europeus e da Bola de Ouro, dois marcos incontornáveis cuja importância permanece intocável até hoje. No entanto, ainda antes destes sucessos, Hanot já tinha estado envolvido em outros combates decisivos, que mostram até que ponto era um homem capaz de estar sempre do lado certo da história.

Duas guerras no caminho

Descobrindo os encantos da bola em plena adolescência, no liceu de Tourcoing, Gabriel Hanot dedicou ao futebol os melhores anos da juventude. A modalidade retribuiu-lhe o carinho: chegou à seleção de França com apenas 18 anos, em 1908, e lá teria permanecido bem mais do que 12 jogos em 11 anos, não fossem dois tipos de conflitos que viriam a moldar-lhe a personalidade e o futuro. O primeiro, entre as duas organizações que pretendiam dominar o futebol em França, a CFI e a USFSA, congela-lhe a carreira e convence-o a fixar-se dois anos na Alemanha, onde estuda o idioma e continua a jogar futebol, no Preussen de Berlim. Regressa a França em 1913, um ano antes de um outro conflito, bem mais sangrento, relegar a paixão pelo futebol para segundo plano – a I Grande Guerra.

Entre 1914 e 1918, Hanot alista-se na aviação, é feito prisioneiro pelos alemães, evade-se, mas aproveita todas as pausas para retomar a paixão de toda uma vida pelo futebol. A dedicação volta a ser recompensada: depois da guerra, em 1919, aos 29 anos, volta a ser chamado à seleção, pela 12ª e última vez. Marca dois golos no adeus: pouco depois, as sequelas de um acidente de aviação retiram-lhe a possibilidade de continuar a jogar ao mais alto nível.

Dinâmico, culto, com uma visão aberta do mundo, não perde tempo a lamentar-se: rapidamente inventa uma dupla carreira, como jornalista e como dirigente, divulgador e dinamizador do futebol.

Nas décadas de 20 e 30, a sua ação passa pelos gabinetes, onde negoceia apoios a iniciativas como por exemplo a criação de centros de formação de jogadores, inspirados nos exemplos ingleses, de que era profundo admirador. Ao mesmo tempo que procura aliados políticos e económicos, os seus editoriais empenhados abrem caminho na opinião pública sobre os benefícios de uma competição profissional, cujo nascimento apadrinha em 1932.

A ambição de Hanot não acaba aí: entusiasmado pelo sucesso dos primeiros Mundiais, mesmo antes de a França organizar a terceira edição da prova, projeta uma primeira versão de um campeonato da Europa de seleções, e apresenta várias propostas para a realização de jogos regulares entre clubes de países diferentes: é dos primeiros a perceber que a partilha internacional da paixão pelo futebol é o caminho mais rápido para o seu sucesso. Infelizmente, pela segunda vez em 20 anos, uma Guerra Mundial volta a pôr-lhe travão nos sonhos.

Quando o jornalista Hanot despediu o selecionador Hanot

Quinquagenário, Hanot é demasiado velho para combater, e sofre as agruras da ocupação nazi, sempre à prcura de pretextos para manter viva a paixão pelo futebol. A sua ação é reconhecida por todos, a tal ponto que, uma vez terminada a guerra, é nomeado selecionador francês – cargo que acumula com o editor de futebol do L’Equipe.

Permanece quatro anos à frente da equipa, até que em junho de 19em junho de 1949, uma embaraçosa derrota (1-5) com a Espanha, no estádio de Colombes, perante mais de 52 mil espectadores, leva o colunista Gabriel Hanot a escrever um artigo, não assinado, no qual deixa bem claro que considera inevitável a demissão do selecionador Gabriel Hanot.

Com 60 anos, poderia pensar-se que o percurso de Hanot estava perto do fim. Mas, pelo contrário, começam aí os seus anos mais produtivos. Viaja muito, escreve ainda mais, acompanha jogos de futebol em todos os cantos da Europa, e assiste ao crescimento de outro grande fenómeno social, a massificação do consumo de televisão. Rapidamente soma dois e dois: para ele, não restam dúvidas de que está encontrado o maior aliado do futebol na segunda metade do século XX.

A TV como aliada

O seu momento «eureka» dá-se em dezembro de 1954, quando é enviado do seu jornal a um jogo entre o campeão inglês, Wolverhampton, e o campeão húngaro, o Honved, base da seleção da Hungria, que na altura tinha a fama de ser a melhor equipa do mundo. O jogo é transmitido pela BBC, os ingleses ganham por 3-2, e no dia seguinte o Daily Mail não tem dúvidas: «Viva o Wolves, novo campeão mundial!».

Hanot indigna-se com a arrogância inglesa nas páginas do L’Equipe e contra-ataca: «Não, o Wolverhampton ainda não é campeão do Mundo!». Um verdadeiro campeão, diz, será capaz de impor-se longe dos seus adeptos. E talvez fosse bom considerar o que têm a dizer a esse respeito clubes como o Real Madrid, ou o Milan: «É chegada a altura de organizar-se um verdadeiro campeonato europeu de clubes. E aí sim, o Wolves poderá dizer que é o melhor». E, juntando a palavra aos atos, em parceria com os colegas Jacques Ferran, Jacques Goddet e Jacques de Ryswick redige os fundamentos de uma competição europeia inter-clubes.

É espantoso pensar-se como, há mais de 60 anos, Hanot já tinha antecipado o futuro: o conceito passa por jogos a meio da semana, para não interferir com os campeonatos nacionais, eliminatórias a duas mãos, para partilhar receitas, e jogos à noite, para potenciar a presença de público em dias de semana e as transmissões televisivas que, com o apoio das televisões de cada país participante, ajudarão a financiar a prova. Em menos de seis meses, o projeto é aprovado pela recém-criada UEFA. A 4 de setembro, no estádio do Jamor, Sporting e Partizan dão os primeiros pontapés na Taça dos Campeões Europeus e a criação de Hanot começa a mudar a face do desporto mundial.

A Bola de Ouro e o fenómeno Garrincha

O prestígio do L’Equipe e da sua revista irmã mais nova, France Football, torna-se global: estão na vanguarda do desporto e, aproveitando esse estatuto, Hanot, sempre defenwsor da internacionalização do desporto, propõe a criação de um prémio anual, destinado a premiar o melhor jogador da Europa. Nasce a Bola de Ouro, que tem como primeiro vencedor, em 1956, o inglês Stanley Matthews.

Dois anos mais tarde, é ainda Gabriel Hanot a estar no lado certo da História, desta vez não como ator, mas como testemunha. É ele o enviado especial do L’Equipe ao Mundial da Suécia que tem a sorte, e o mérito, de assistir à estreia de Pelé e Garrincha em campeonatos do Mundo. O palco é o estádio Ullevi, em Gotemburgo, os intervenientes, o Brasil e a URSS, campeã olímpica em título. Prevê-se um choque de titãs, mas Garrincha desfaz qualquer equilíbrio: os seus dribles embalam o Brasil para uma vitória por 2-0, que antecipa o título de campeão mundial. Gabriel Hanot não tem dúvidas sobre o nascimento de um génio: «Os melhores três minutos da história», escreve no L’Equipe, a propósito do início de jogo do Brasil, e de Garrincha, até ao primeiro dos dois golos de Vavá. Convenhamos: ao fim de 50 anos no lado certo da História, se algum jornalista se sentia autorizado a escrever em seu nome, esse jornalista não poderia ser outro se não Gabriel Hanot.

Soldados desconhecidos é uma rubrica dedicada a figuras pouco conhecidas da história do futebol, com percursos de vida invulgares.