Albertino Pereira, 65 anos. Futebolista, pintor e responsável por dois momentos históricos no futebol português nos despiques entre FC Porto e Boavista.

Em 1976, a sua contratação por Valentim Loureiro para o Boavista levou Pinto da Costa a aceitar o convite do então presidente portista Américo de Sá para assumir o departamento de futebol dos azuis e brancos. Três épocas depois, Pinto da Costa e Pedroto resolveram resgatá-lo a ele, então já ídolo no Bessa, e no negócio com os axadrezados foi, sem querer, inventada a Supertaça, que mais tarde viria a ganhar o nome de
Cândido de Oliveira.

Em dia de dérbi da Invicta, o antigo avançado – internacional A por duas vezes – recorda em entrevista ao Maisfutebol as primeiras batalhas entre o Boavista de Valentim Loureiro e o FC Porto de Pinto da Costa, jamais esquecendo Pedroto.
 
 
Depois da goleada para a Liga, no passado sábado, Boavista e FC Porto reencontram-se esta quarta-feira nos quartos-de-final da Taça de Portugal. Jogou nos dois lados. Tem alguma preferência?
Em jogos entre o Boavista e o FC Porto não quero interferir.

A diferença entre as duas equipas é hoje maior do que no seu tempo…
O futebol de hoje é muito tático. Em concreto, acho que este ano para o Boavista está difícil. Faltam ali jogadores que façam a diferença… Ao FC Porto, para já, falta treinador, mas também um homem de área. Acho o Aboubakar mais perigoso se jogar solto.

Recuando umas décadas… A sua transferência para o FC Porto começou numa final no Jamor, em que o Boavista venceu o Sporting (1-0 na finalíssima), em 1978/79…
Três anos depois de ter trocado o Leixões pelo Boavista, voltei a ter um convite do FC Porto. O Pinto da Costa ligou-me e marcou uma reunião em casa dele. Estava lá o José Maria Pedroto, que me disse «tens de ser tu a convencer o major (Valentim Loureiro) e dizer que queres vir para FC Porto, senão ele vai inflacionar isto e vai querer dinheiro, jogadores…». Eu deixei passar três meses e na final da Taça de Portugal, ainda no relvado do Estádio Nacional, após vencermos o Sporting, agarrei no braço do major e disse-lhe: «Acabou a minha carreira no Boavista. E acabou bem... Não está contente com o Albertino? Três anos em grande a levar a equipa às costas?»

E ele aceitou?
Não, disse que eu era inegociável, e eu ainda tinha mais um ano de contrato. No dia seguinte, disse-lhe que tinha uma proposta do FC Porto e que ele não me podia «cortar as pernas». Ele quis aumentar-me, mas eu nem queria conversa. Durou até à pré-época aquilo. Até que eu lhe disse: «Estou no Boavista de corpo, porque de espírito já estou no FC Porto...» Era o que o Pedroto me tinha aconselhado a dizer e acabou por resultar…

Como é que o negócio se concretizou?
O FC Porto teve de pagar quatro mil contos, cedeu também o Óscar, um jogador cabo-verdiano que tinha vindo do Estoril, e combinou dois jogos, no Bessa e nas Antas, com a receita a reverter para o Boavista. Foi assim que surgiu a Supertaça… Ninguém sabia que nome havia dar ao jogo particular de pré-época nas Antas. Um dizia «Taça Amizade», outro disse «Supertaça»... E assim ficou. Curiosamente, o FC Porto era campeão e o Boavista vencedor da Taça. A Supertaça começou assim: foi criada como o jogo da minha transferência. Venceu o Boavista essa primeira edição (1-2 nas Antas com um bis de Júlio Carlos, que já havia decidido a Taça frente ao Sporting).

Nas Antas concretizou o sonho de ser treinado por Pedroto. Que memórias tem dele?
Foi o meu pai no futebol. Era bem mais do que um grande treinador… Dava gosto ouvi-lo e ele parecia que adivinhava aquilo que os jogadores precisavam. Preocupava-se com cada detalhe. «Tens casa? Não? Então vais tirar parte do teu salário para comprar uma casa», disse-me. Foi assim que comprei esta casa, onde ainda hoje vivo e serve de meu atelier. «Precisas de um carro?», «Já trataste da escola para a tua filha?». Coisas assim… E tinha os jogadores na mão. Por exemplo, quando apareceram os vídeo-gravadores ele insistiu que eu também tivesse um. Pensava o Pedroto: «Enquanto este “gajo” está em casa a ver vídeos, não sai à noite…»

Foi por causa dele que acabou por preferir o Boavista em vez do FC Porto em 1976/77?
Foi, mas tive azar. Quando cheguei ao Boavista, ele foi contratado pelo FC Porto. O Sporting e o Benfica também estiveram interessados em mim, mas eu não queria ir para Lisboa. Queria o FC Porto, mas foram três meses de reuniões atrás de reuniões de madrugada na sede, nos Aliados. Um ambiente soturno, tudo à média luz... Uns vinte dirigentes todos engravatados e de fato escuro. Aquilo parecia um funeral… Se um dia fizesse um quadro sobre aquilo pintaria tudo em tons de preto e branco. Ainda hoje evito passar ali.

E acabou no Boavista…
Não havia empresários de jogadores. Eu é que negociava sozinho e saía de lá às três ou quatro da madrugada para no dia seguir treinar de manhã no Leixões. No FC Porto dessa altura todos os diretores davam opinião em relação ao negócio. Foi aí que apareceu o major Valentim Loureiro decidido: aceitei os 150 contos de «luvas» do Boavista e um salário de 50 contos, que era quanto o Benfica também me oferecia, um valor que o FC Porto não queria pagar. Dei a minha palavra ao major... Nem foi preciso assinar.

Foi o seu caso que “empurrou” Pinto da Costa para assumir o departamento de futebol nas Antas?
Sim, no dia seguinte, na confeitaria Petúlia, onde se juntavam dirigentes do FC Porto e do Boavista, houve quem pegasse no Jornal de Notícias para gozar com o Pinto da Costa: «Então levaram-vos o Albertino?» Ele amarfanhou o jornal e respondeu: «Largos dias têm cem anos…» [a frase que viria a dar título da biografia do presidente do FC Porto] Nesse dia, ligou para o presidente Américo de Sá e aceitou o convite que ele lhe tinha feito meses antes para dirigir o departamento de futebol. Foi a partir do meu caso que o FC Porto mudou. Mal assumiu o cargo, o Pinto da Costa contratou o Pedroto ao Boavista…

Pinto da Costa recorda-se disso ainda hoje?
Ele diz-me que fui eu o culpado por ele ter decidido naquela altura ir para o futebol. Recentemente, convidou-me para expor a minha obra no Museu do FC Porto. Comprou-me um quadro e ficou com outro para o museu.

Que recordações tem do futebol?
Eu era um jogador objetivo. Rematava bem de fora. Marquei cento e tal golos e no Leixões e no Boavista tive um excelente percurso. No FC Porto concretizei o meu sonho, mas o Pinto da Costa ainda hoje me diz que eu devia de ter chegado lá mais cedo. Ainda fiz três épocas lá (de 1979/80 a 1981/82), mas um dia o Pedroto veio ter comigo e disse-me que já não estava no nível que o FC Porto exigia. «Não te preocupes, que arranja-se aí um clube “porreiro” para tu ires.» Tinha mais dois anos de contrato com o FC Porto, mas fui para o Marítimo e depois terminei a carreira no Leixões.

E depois acabou por dedicar-se à pintura…
Tenho o curso de quarto nível de treinador, mas não gosto de ser insultado e deixei essa carreira de parte após seis épocas a treinar. O meu pai pintor e ainda em miúdo andei na Escola Artística Soares dos Reis. Comecei a levar a pintura mais a sério aos 40 anos e corri a Europa. Regressei a Portugal em 2002, exponho e volta e meia pego nos quadros e vou vender a galeristas em França, na Bélgica, no Luxemburgo… Em Portugal já tinha morrido à fome. Faço o que gosto. Quando era miúdo sempre disse: «Quero ser pintor e jogador de futebol» Consegui ser as duas coisas. Não me posso queixar.