+O Olímpico do Montijo prepara o duelo contra o Sp. Braga na Taça de Portugal. Ao longo da semana, os protagonistas da prova rainha escrevem na primeira pessoa no Maisfutebol. Como são estes dias para atletas semi-profissionais e para plantéis que andam longe do foco mediático? A essência da Taça de Portugal nas palavras dos candidatos a heróis.

MIGUEL ÂNGELO: 36 anos, defesa central do Montijo

. 11 de dezembro de 2020, a três dias do Montijo-Sp. Braga no Jamor


«Tenho dois filhos e acordo todos os dias às 7h30. Eu e a minha mulher damos banho aos miúdos e depois vamos levá-los à escola, às 9 horas. 15 minutos depois estou no estádio do Montijo e às 9h45 arranca o treino. Perto do meio-dia vou para casa, almoço sozinho ou com a minha mulher e às cinco da tarde vou buscar os miúdos. A minha mulher costuma sair às 21h30 e por isso trato dos miúdos até ela chegar. Tenho um dia-a-dia de trabalho-casa, rotineiro, e agora com esta pandemia ainda mais. 

Comecei a época no Loures, estive lá três semanas, mas recebi o convite do Montijo e aceitei para estar aqui ao lado de casa. Estou a cinco minutos do campo, expliquei a situação às pessoas do Loures e elas foram muito compreensivas. 

O Montijo é um clube modesto, mas que tem cumprido na íntegra com as suas obrigações. O salário tem sido pago antes do dia agendado. É um clube estável e organizado, tem as condições possíveis para competir bem no Campeonato de Portugal. O plantel é muito jovem, só eu é que tenho mais de 30 anos. Há alguma inexperiência e em alguns jogos isso paga-se caro, mas temos aqui gente com nível para jogar nos campeonatos profissionais. 

Miguel Ângelo numa das muitas equipas do Sporting onde jogou

Tenho uma carreira longa, estive nas seleções jovens, mas nunca joguei no Estádio do Jamor. Treinei muitas vezes lá, fiz lá uma exibição com a seleção de Lisboa, mas vai ser a primeira vez que estarei lá num jogo oficial. 

A malta mais nova tem-me feito perguntas sobre o estádio, sobre a envolvência de uma equipa grande como é a do Sp. Braga. Digo-lhes para eles aproveitarem, mostrarem-se, porque vai dar na televisão e todo o país vai ver o Olímpico do Montijo. Eu tenho 36 anos e estes jogos já não mexem comigo. 

O mundo é pequeno e este dado é curioso. Fui jogador do Marítimo, o nosso treinador era o mister Carvalhal e marquei um golo ao Sp. Braga. Agora ele está do outro lado e vou reencontrá-lo. Vai ser engraçado estar com ele. Isso foi a 13 de setembro de 2009, há mais de 11 anos. Marquei o golo cedo, o Sp. Braga deu a volta e venceu por 2-1. Foi um bom golo de cabeça.

O Carvalhal já era um bom treinador. Foi dos melhores que apanhei na minha carreira. Organizado, disciplinado taticamente e boa pessoa.

Miguel Ângelo numa das chamadas às seleções nacionais

Nasci e cresci em São João da Talha, comecei a jogar no meu Sanjoanense. Era escolinha, já jogava pelos infantis, era o número 10 e fazia 20 golos por época. O senhor Aurélio Pereira descobriu-me, convidou-me a ir ao Sporting e assinei contrato. O Benfica também me convidou, mas o Sporting era mais forte e optei pelos leões. 

Foi o mister Osvaldo Silva que me colocou a jogar a central. A líbero. Fiquei lá até hoje. Joguei 12 anos no Sporting, nos últimos dois estive emprestado ao Casa Pia e ao Barreirense. Quando saí do Sporting, já tinha a noção de que era muito difícil chegar ao plantel principal. Não dá para toda a gente, ainda menos como defesa central. É raro haver um treinador a apostar num miúdo que joga numa posição defensiva. 

Estive no Euro sub19 de 2003, fiz todos os jogos e só falhei a final. Por uma regra estúpida. Levei um amarelo no primeiro jogo, outro na meia-final e só não estive no jogo decisivo. Fiz dupla com o Amoreirinha. A Itália foi campeã da Europa, tinha o Chiellini e o Pazzini por exemplo. Tínhamos uma excelente equipa. João Pereira, Hugo Almeida, o guarda-redes era o Paulo Ribeiro, muita gente fez boas carreiras. 

Eu adorava ir para os estágios da seleção. Sempre adorei o convívio, estar nesse ambiente. Há diversão e também muita dedicação. Quando deixar o futebol, essa vai ser a parte de que mais vou ter saudades. Foi pena termos perdido essa final. Se tivéssemos sido campeões europeus, se calhar a minha carreira tinha sido diferente. Depois do Europeu fui para a equipa B e fiz dupla com o José Fonte. 

Miguel contra Liedson num Olhanense-Sporting

Cristiano Ronaldo. Pois é, fui colega dele durante vários anos. Sempre foi diferente. Só alguém que não soubesse nada de bola é que podia achar que ele não ia dar nada. A cabeça dele era diferente, era muito focado e queria ser o melhor em tudo. No pingue-pongue, nos matrecos, no bilhar. Até de noite ia para o ginásio e chegou a ser castigado por causa disso. 

Certo dia fomos jogar à Madeira, mas o Cristiano foi castigado e falhou a visita à família. Já não me lembro se foi castigado por ter ido para o ginásio ou se teve algum mau comportamento na escola. Tinha uma mentalidade obsessiva. O Quaresma era um génio também, mas a cabeça não pensava tão bem. O Cristiano era mesmo obcecado pela perfeição e continua assim. 

Muitos aqui no Montijo se calhar nem sabem que joguei com o Cristiano. Outros sabem. Perguntam-me como ele era, têm grande curiosidade. Joguei com o Cristiano e agora estou no Montijo, é giro. Eu nunca vivi na Academia, porque a casa dos meus pais era próxima. O Cristiano dava-se mais com a malta que vivia lá dentro, como o Semedo e o Miguel Paixão. Mas dava-me bem com ele e ainda há poucos anos nos vimos no Algarve. Ele viu-me ao longe e fez questão de me vir dar um abraço. Estivemos a falar um bocado. Se fosse outro, se calhar virava a cara. Só tenho coisas boas a contar sobre o Cristiano. 

Na I Liga joguei no Trofense, no Marítimo e no Olhanense. Na minha estreia fiz logo um golo, mas perdemos 3-1 contra a Naval. Descemos, mas fiz uma boa época. Foi pena ter falhado mais uma vez o último jogo, por lesão. Perdemos e caímos para a II Liga. Fico sempre com a sensação de que podia ter feito mais. 

Tenho ainda subidas à I Liga com o Arouca e com o Desp. Chaves com o grande Vítor Oliveira. Das melhores pessoas que conheci. Estive três anos e meio com ele, um homem especial. É mesmo verdade. Estabeleci uma ligação muito forte com o Vítor. Senti muito a morte dele. Não tinha papas na língua, dizia sempre o que tinha a dizer. E nas conferências de imprensa era igual. Tinha o dom da palavra.»

NOTA: fotos gentilmente cedidas por Miguel Ângelo. Na foto de capa, estão destacados Cristiano Ronaldo e Miguel numa equipa do Sporting.