Janeiro de 1998. Há um wildcard que está a fazer furor em Adelaide, Austrália. Chama-se Lleyton Hewitt, usa boné para trás e tem pinta de surfista.

Com 16 anos, está «apenas» a dois encontros de se tornar no tenista mais novo numa década a vencer um torneio da categoria ATP.

Mas, para lá chegar, vai ter de ganhar primeiro a um dos seus ídolos de infância: o norte-americano Andre Agassi, de quem tem um poster no quarto.

Quando chega ao Memorial Drive nesse dia, encontra Agassi no balneário a ler um livro tranquilamente em tronco nu. Ali ao lado, Hewitt equipa-se para a sessão de treino antes do encontro mais importante de algo a que ainda não se pode chamar carreira.

Veste uns calções largos e acrescenta-lhes uma pregadeira para os segurar. Sai e volta a entrar 45 minutos depois de um treino debaixo de um calor infernal. Agassi continua no balneário. Em tronco nu e a ler o mesmo livro, alheado de tudo e todos. Do ténis e do miúdo que cresceu a idolatrá-lo.

A ideia de vencer o tenista norte-americano nem é a mais presente na sua cabeça. «Lembro-me de estar a caminho do court, de olhar para o céu e pedir: ‘Por favor, não me embarasses. Deixa-me ganhar pelo menos um jogo’», recordou há dias numa reportagem da Australian Open TV.

Hewitt não ganhou apenas um jogo. Ganhou dois sets e afastou do torneio um dos melhores tenistas da época. «Devia tê-lo respeitado mais, principalmente nos pontos importantes», viria a dizer Andre Agassi sobre o adolescente que acabou por ganhar o torneio.

Três anos depois, chegaria ao topo do ténis mundial. Mas já lá vamos.


No torneio de Wimbledon em 1999, durante um encontro contra o alemão Boris Becker, atual treinador de Novak Djokovic

Filho de um jogador de futebol australiano e de uma jogadora de corfebol, Lleyton Hewit começou a praticar ténis com apenas três anos. Até aos 13 revezou-se entre o desporto do pai e os courts, até decidir-se de vez pelas raquetas. Por essa altura, os pais já tinham planos para ele.

Um ano antes entraram em contacto com Darren Cahill, treinador que em 2003 viria a ajudar Agassi a tornar-se no tenista mais velho a chegar à liderança do ranking ATP, com 33 anos.

«Recebi uma chamada dos pais e depois bateram-me à porta. Era um rapazinho com chapéu para trás e com roupas da Nike à Andre Agassi. Tinha calções abaixo do joelho, raquetas Prince. Tinha umas oito raquetas na mala. Não me parece que alguém com 12 anos tenha oito raquetas, mas ele já era muito profissional naquela altura e tudo o que ele queria era tornar-se tenista profissional», recordou Darren Cahill em entrevista ao Open Court, da cadeia norte-americana CNN.

Hewitt cresceu. Refinou-se. Quando bateu Andre Agassi na tal meia-final em Adelaide, destacou-se pela capacidade de antecipação em court e pela resposta ao serviço, uma das suas principais armas.

«Ele era muito franzino e nem sei se terá a altura que dizem ter [1,78m]. Mas era muito rápido, dava tudo em court e sua grande vantagem era a enorme intensidade exibicional. Tinha também uma excelente esquerda a duas mãos e uma direita fracota mas que foi melhorando. Era muito bom a redireccionar a bola, exímio a esconder os pontos menos fortes. Tinha uma boa leitura de jogo, capacidade de antecipação, sabia responder muito bem ao serviço, tinha um óptimo passing shot e um dos melhores lobs», diz Miguel Seabra, comentador de ténis da Eurosport, em conversa com o Maisfutebol.


A ascensão até ao topo

Lleyton Hewitt terminou o ano de 1998, o primeiro enquanto profissional, às portas do top 100. Para se ter uma ideia, Federer, então também com 17 anos, estava fora dos 300 primeiros do ranking ATP. Em maio de 2000 atingiu pela primeira o top 10 e, em 2001, venceu pela primeira vez um torneio do Grand Slam, aos 20 anos. Na final, derrotou Pete Sampras, que na altura já era o tenista da história com mais majors conquistados (13 de 14). Foi a maior derrota do norte-americano numa final do Grand Slam: 7-6, 6-1 e 6-1.

Estava cumprida a profecia lançada por Sampras um ano antes, após a final do torneio de Queens, em Londres, na qual Hewitt levou a melhor por duplo 6-4. «É o futuro do ténis.»


Instantes após a conquista do Open dos Estados Unidos em 2001

Em 2001, o tenista australiano teve a melhor época da carreira. Para além do Open dos Estados Unidos, ganha mais cinco torneios ATP, entre os quais a então denominada Masters Cup, torneio que reúne os oito melhores jogadores da temporada, e cuja vitória lhe garantiu o assalto ao primeiro lugar do ranking.

Aos 20 anos tornou-se no tenista mais jovem da história a chegar ao topo, um recorde que ainda está por bater. Ocupou o trono durante 75 semanas consecutivas, entre novembro de 2001 e abril de 2003. Uma liderança sustentada por mais cinco títulos em 2002 ano em que venceu o segundo e último torneio do Grand Slam da carreira. Numa das finais mais desequilibradas da história do torneio inglês, arrasou o argentino David Nalbandian por 6-1, 6-3 e 6-2.


A rivalidade com Federer

Lleyton Hewitt protagonizou com Roger Federer a primeira grande rivalidade do ténis no século XXI. Entre 1999 e 2014, defrontaram-se 27 vezes, 13 delas concentradas entre 2002 e 2005. O suíço lidera no mano a mano com 18 vitórias e nove derrotas, mas só ao fim de alguns anos é que começou a bater o rival com frequência. Hewitt levou a melhor em sete dos primeiros nove embates.

Miguel Seabra, que narrou para a Eurosport o último dos 878 encontros da carreira de Hewitt na variante de singulares, aponta a derrota de Federer com o australiano para a Taça Davis, em 2003, como o turning point dos embates entre ambos. «Lembro-me que o Roger esteve em vantagem por dois sets a zero mas acabou por perder. O Lleyton Hewitt costumava ser a besta negra do Federer, que a partir dessa derrota começou a lidar melhor com o lado emocional», diz.

«Ele ganhava-me muitas vezes no início. Lleyton era especial, sem dúvida. Obrigou-me a perceber o meu jogo e ajudou-me a tornar-me melhor jogador», disse recentemente Federer, elegendo a rivalidade com o australiano como a mais intensa que teve nos primeiros anos de carreira.


Ponto entre Federer e Lleyton Hewitt na final do Masters de Indian Wells em 2005.
O suíço ergueu a taça, mas perdeu o ponto do torneio com o australiano


Fama de enfant terrible

Amado por uns, odiado por outros. No pico da carreira, Lleyton Hewitt estava longe de ser uma figura consensual no mundo do ténis. Uma espécie de John McEnroe contemporâneo, politicamente incorreto, tal como admitiu numa entrevista em 2002. «Ele virava-se contra o público, gritava com os árbitros, reclamava com toda a gente. Ele era assim e eu provavelmente sou muito parecido. Aprendi a não ser inibido.»

Em 1999, no torneio de Adelaide – o primeiro da categoria ATP que ganhou em 1998 com 16 anos – teve o público australiano contra ele num encontro. Hewitt não foi de modas e saiu ao ataque: «Estou a jogar diante do meu público e em pelo menos três quartos do tempo apoiam um checo [Slava Dosedel]?» Um ano depois, no mesmo torneio, pegou-se com um juiz de linha quando vencia o primeiro set de um encontro por 5-0.

Enquanto esgrimia argumentos num tom pouco apropriado, o descontentamento do público para com o comportamento do prodígio australiano fez-se ouvir. «É apenas a estupidez do público australiano», disparou Hewitt no final.


Com Juan Ignacio Chela após um tenso encontro no Open da Austrália em 2005

Em 2001, foi multado em 2 mil dólares por ter dito que os juízes de cadeira e de rede sofriam de paralisia cerebral. Nesse mesmo ano, mas no Open dos Estados Unidos, enfrentou acusações de racismo. Depois de duas faltas de pé assinaladas, Hewitt sugeriu que o juiz de linha estava a favorecer o adversário (James Blake) por causa da cor da pele, exigindo de seguida ao juiz de linha que o retirasse do court. O tenista australiano defendeu-se das acusações com o argumento de que tinha nascido e crescido num país multicultural.

Mas o comportamento intempestivo de Lleyton Hewitt no court não gerava apenas falta de empatia entre juizes e público. Uma das imagens de marca, quase sempre que ganhava um ponto, era como o festeja: pancadas no peito acompanhadas pelo sonoro grito de guerra «c'mon». Por mérito próprio ou devido a erros não-forçados dos adversários.

«Celebra os erros dos adversários, é agressivo e é muito difícil não me sentir provocado. Preferia não ganhar um único torneio na vida a ser como ele», atirou Guillermo Coria em 2005 após um encontro para a Taça Davis, num ano marcado por vários episódios tensos de Hewitt com tenistas argentinos.

Em janeiro, na terceira ronda do Open da Austrália, Juan Ignacio Chela (ver vídeo em baixo) atirou ao corpo de Hewitt num serviço. Pouco depois, cuspiu na direção do tenista australiano numa troca de campo. Na origem do ambiente de cortar à faca estiveram as celebrações de Hewitt após as conquistas de alguns pontos.




De 2005 ao ponto final e com muitas lesões pelo meio

A carreira de Lleyton Hewitt entra na fase descendente em 2005, quando Roger Federer já domina o panorama do ténis mundial e começa a emergir um jovem chamado Rafael Nadal. Entre 2003 e 2014, os dois ganham, em conjunto, 30 títulos do Grand Slam.

Se a concorrência é voraz, as lesões que começam a ser constantes impedem que Lleyton Hewitt se apresente na plenitude das suas capacidades. Nos anos seguintes, passa mais tempo a recuperar de lesões do que a jogar ténis. Sucedem-se operações à anca, ao joelho direito e a um dedo de um pé direito, que o obrigou a falhar praticamente toda a época de 2011. Contou que ouviu a opinião de sete dos melhores especialistas na área da ortopedia. Diziam-lhe para esquecer o ténis, mas isso estava fora de questão.


Em 2004 após ser atropelado por Roger Federer (6-0, 7-6 e 6-0) na final do Open dos Estados Unidos. Apesar da longa rivalidade, foi a única vez que se defrontaram numa final do Grand Slam

Hewitt pagava o preço de deixar tudo em court, mas resistiu aos avisos constantes que o corpo lhe foi dando, às derrotas humilhantes em torneios menores e ao descalabro no ranking. A última presença numa final de um torneio do Grand Slam aconteceu em 2005, no «seu» Open da Austrália. Federer, Nadal, as lesões e, mais tarde, Novak Djokovic e Andy Murray não o deixaram ser melhor. Só isso? Talvez não: «Antes das lesões ele já tinha esmorecido, perdido alguma fogosidade», observa Miguel Seabra.

Esta quinta-feira de manhã (noite na Austrália), o que sobrava da chama apagou-se com um sopro do espanhol David Ferrer. Na Rod Laver Arena, o maior dos palcos da Austrália, ouviu-se o último «c’mon»!

«Dei tudo o que tinha, como sempre. Não tinha mais nada para dar. Ao longo de toda a carreira dei sempre 100 por cento.»


Nota final: esta quinta-feira, o blogue desportivo Show Legend avançou com uma lista de 15 tenistas com resultados considerados «suspeitos». Entre eles estava o nome de Lleyton Hewitt. “Acho que ninguém pensa que estou envolvido em corrupção ou jogos combinados. Isso é um absurdo. Se alguém tenta empurrar-me nessa direção, boa sorte. Lançar o meu nome no meio de tudo isto é uma farsa absoluta​», respondeu o tenista australiano.