A Superliga não acontecerá. Por agora. Desta vez a pressão por uma competição europeia de clubes fechada, reservada aos grandes, durou um ano. A Associação Europeia de Clubes (ECA) enterrou o machado de guerra nesta terça-feira, pela voz do seu presidente, Karl-Heinz Rummenigge, que de caminho dirige um desses clubes mais poderosos, o Bayern Munique.

É uma história que tem quase 20 anos e emerge ciclicamente na agenda. Voltou a ser assim há um ano, primeiro com as notícias de uma reunião em Londres de vários clubes ingleses com o empresário norte-americano que organiza a International Champions Cup, um dos maiores torneio de pré-época.

Os clubes em causa (Manchester United, Arsenal, Chelsea, Manchester City e Liverpool) não deram a cara pelo assunto, mas o próprio empresário, Charlie Stillitano, explanou a ideia, que passaria por trazer para a Europa o conceito de Liga fechada, que incluiria os clubes com maior potencial para gerar receitas. Num discurso que, por exemplo, excluía das contas o Leicester, então embalado para conquistar o título inglês. Na altura, levou uma resposta bem humorada do treinador Claudio Ranieri.

Em janeiro do ano passado, o próprio Rummenigge assumia que o assunto estava sobre a mesa. «Não afastou a ideia de que no futuro seja fundada uma Liga Europeia em que joguem grandes equipas da Itália, Alemanha, Inglaterra, Espanha e França. Pode ser organizada pela UEFA ou potencialmente privada», dizia. «Os clubes e a UEFA estão numa fase de discussão nesta altura», acrescentava, dois meses depois.

Estava o tema de novo na ordem do dia. Com opiniões a favor e contra. No segundo caso, maioritariamente, adeptos. Os próprios fãs do Bayern Munique manifestaram-se contra a ideia da Superliga naquele novo surto de 2016.

O conceito dessa Superliga traz, por arrastamento, um enfraquecimento dos campeonatos nacionais, num cenário em que os «grandes» deixariam de participar na prova doméstica, pelo menos nos moldes atuais. Foi essa a questão que apontou por exemplo Pep Guardiola há um ano, quando o tema Superliga estava sobre a mesa. «Seria interessante, mas não sei o que aconteceria aos campeonatos nacionais. Não sei o que seria da Bundesliga sem o Bayern, ou da Liga espanhola sem o Barcelona e o Real Madrid. As ligas domésticas são muito importantes do ponto de vista do espírito das equipas e do ponto de vista cultural», diz o então treinador do Bayern.

Em setembro, a UEFA apresentou um novo modelo para as competições europeias, que explicou com mais detalhe no final do ano. A nova fórmula, para o ciclo de 2018 a 2021, muda muita coisa. Começa por dar acesso garantido à Liga dos Campeões a mais clubes dos principais campeonatos. As quatro primeiras ligas do ranking da UEFA passarão a ter cada uma quatro clubes com entrada direta na fase de grupos. Ou seja, metade dos lugares.

Champions: o que muda a partir de 2018

A distribuição financeira de receitas introduziu novos parâmetros. Tirou valor ao market pool e acrescentou-lhe um item de coeficiente, que tem em conta os resultados dos clubes nas últimas 10 temporadas. Uma opção que beneficia, argumenta a UEFA e agora também Rummenigge, os clubes mais fortes de ligas médias. Como FC Porto e Benfica, em Portugal.

Mudanças que a UEFA garante não terem sido motivadas pela pressão dos grandes clubes, mas que respondem a muitas das questões por eles levantadas. Giorgio Marchetti, secretário-geral da UEFA, esteve em Portugal na semana passada para o Football Talks e falou precisamente sobre isso. Disse que a UEFA procedeu às mudanças por sentir que a fase de grupos da Liga dos Campeões está a dar «sinais de declínio de competitividade», com «risco de impacto negativo no interesse da comunicação social». A Liga dos Campeões, acrescentou, podia ver a sua «posição de liderança ameaçada pelas maiores Ligas», e existia «risco de estagnação ou declínio de receitas, se combinadas com más condições de mercado».

A solução encontrada procurou, disse ainda, conseguir que a Liga dos Campeões equilibre «a dimensão de melhor competição com a abertura a todas as associações» e também que «permaneça» um fator de unidade e estabilidade no futebol europeu.

Para reforçar a ideia, Marchetti deixou alguns números. Na lista de acesso às competições europeias, se a Liga dos Campeões passa a ter maior peso dos grandes e menos países representados, a Liga Europa passa a ter também um «caminho de campeões», para clubes que venceram os seus campeonatos mas não conseguiram entrar na Liga dos Campeões, alargando o número potencial de países com acesso à Liga Europa.

Quanto à distribuição financeira, Marchetti fala também num reforço de pagamentos solidários a países fora das cinco grandes Ligas. E deixa números que dão a dimensão do peso das «Big 5» no negócio do futebol.

Diz então o responsável da UEFA que as «top 5» geram 86 por cento das receitas. E recebem 60 por cento. As Ligas entre as posições 6 e 15 do ranking geram 11 por cento das receitas e recebem 24 por cento. Todas as restantes, do 16º ao 54 lugar, geram 3 por cento das receitas e recebem 16 por cento.

A solução encontrada teve nesta terça-feira a benção formal dos representantes dos clubes europeus, na Assembleia Geral da ECA. «É uma solução justa. Estou certo de que tornará a Liga dos Campeões mais forte do que nunca», disse Rummenigge, defendendo que a nova fórmula preserva também o princípio da «solidariedade» e fechando de vez o tema Superliga: «Quanto à Superliga, a nossa posição é clara, queremos manter-nos sob o guarda-chuva da UEFA e continuaremos a cooperar com eles no futuro».

A Superliga vai portanto, pelo menos, hibernar. O exemplo do passado não permite acreditar que o assunto tenha morrido de vez. Aliás, ainda há um mês o tema voltou a emergir, desta vez na imprensa espanhola. Foi a propósito do adiamento do jogo entre o Real Madrid e o Celta Vigo, que criou um problema complicado de calendário para os merengues. Sucederam-se as notícias de que o gigante espanhol viu esse problema como a gota de água na incompatibilidade entre futebol de alto nível e a competição doméstica. E lá veio, por arrasto, mais conversa sobre a Superliga.

É uma história com quase duas décadas. A ideia de uma competição que ponha os clubes com maior potencial comercial a jogar entre si aparece, lança-se o debate e acaba por sair da agenda mediática, coincidindo em vários dos casos com alterações no formato ou na distribuição de receitas da prova-rainha do futebol europeu, a Liga dos Campeões. A primeira investida relevante aconteceu em 1998, tendo por rosto uma empresa italiana chamada Media Partners, que falava em organizar uma prova à revelia da UEFA. Não avançou, mas antecedeu o alargamento da Liga dos Campeões de 24 para 32 equipas, então com duas fases de grupos.

Na primeira década do século voltou a falar-se do assunto por várias vezes, normalmente associado ao G-14, a organização de clubes europeus que integrava os principais representantes das maiores Ligas e de que fazia parte o FC Porto. Foram incursões pelo tema não claramente assumidas, mas que alimentaram o debate. Em 2009, o presidente do Real Madrid, Florentino Perez, assumiu publicamente que a ideia interessava ao seu clube.

O G-14, que liderou várias frentes de batalhas com UEFA e FIFA, nomeadamente quanto à compensação pela cedência de jogadores às seleções, foi extinto em 2008. A sua sucessora é a precisamente a ECA, que tem uma base de participação mais alargada.

Se a mudança de formato das provas europeias fechou a frente de batalha da Superliga, o braço de ferro entre clubes e organizações do futebol internacional não morreu no entanto aqui. Ainda hoje, enquanto arrumava este assunto, Rummenigge carregou o tom relativamente a outro cavalo de batalha dos clubes grandes: a cedência de jogadores às seleções, que se traduz nesta altura na contestação ao Mundial a 48 clubes proposta pela FIFA.

«A FIFA sabe que não estamos satisfeitos com o aumento do número de participantes no Mundial. A FIFA tem de aceitar que está a usar os nossos jogadores», disse: «O maior problema que enfrentamos no futebol são os assuntos relativos às seleções, porque os jogos estão sempre a aumentar. Chegou a altura de as autoridades pensarem mais no futebol e não apenas em finanças ou política.»