Talvez seja defeito profissional ou apenas o resultado da ausência de sete anos do jornalismo desportivo, mas se há algo que não entendo no fenómeno futebolístico em Portugal é o afastamento entre jornalistas e jogadores/treinadores. Não é assim em todos os clubes, mas é mais grave nos três grandes, que encurtam relações, erguem barreiras, colocam entraves, dizem não, não e não. A lógica alarga-se a jogadores que já estiveram por cá e que entretanto emigraram, ou seja, a maiores estrelas, que normalmente estão indiponíveis.

Tudo isto está errado, tudo, e irrita-me que nada seja feito para que isto seja alterado.

A desculpa é que os jogadores não sabem falar ou que os jornalistas extrapolam. Ou outra coisa qualquer. Todos os argumentos são maus e só servem para prejudicar o produto, o espetáculo, no fundo o adepto, que se já não tem hipótese de ver os jogadores no dia-a-dia, porque estes estão encerrados nos bunkers dos centros de estágio ou nos condomínios de luxo, raramente ficam a conhecê-los verdadeiramente.

Claro que este sentimento não é novo, mas a situação está cada vez mais podre. Enquanto outros deportos de elite se preocupam em vender o produto da melhor forma possível, e os contactos com a comunicação social são entendidos como essenciais, em Portugal promove-se o
culto do muro. Lamentável.

Se noutra alturas falei de situações que estão a uma galáxia distância ( como a NFL ou a NBA), tropeço agora no exemplo de Carlo Ancelotti, que convidou o grupo habitual de 30 jornalistas que acompanha o dia-a-dia do Real Madrid para assistir ao treino à porta aberta (são fechados desde 2006), para além de promover uma conversa cordial, mas sem captação de som e imagem. No fundo uma entrevista mais relaxada, para que todos se conheçam melhor, para que fantasmas sejam afastados.

Ou seja, algo que se faz já em Portugal nomeadamente no jornalismo que cobre os assuntos económicos e políticos, com encontros informais, muitas vezes pequenos almoços, entre jornalistas e os principais agentes envolvidos nos temas que marcam a atualidade. São momentos de esclarecimento e que muitas vezes acabam por quebrar o gelo num tipo de relação absolutamente relevante para ambas as partes.


(Foto jornal Marca)

O que Ancelotti fez esta semana em Madrid não é normal no futebol, mas pode servir de exemplo. O treinador italiano sentou-se durante mais de uma hora perante uma plateia de jornalistas e aceitou responder a tudo, sem condições. Tentou quebrar mitos, elogiou, criticou e claramente agradou pelo seu comportamento. Só não respondeu às questões mais corriqueiras, dizendo: «Isso é uma pergunta de conferência de imprensa».

O italiano assegurou que não persegue os jogadores na sua vida privada, porque prefere construir uma relação de confiança e respeito. Acredita na evolução tecnológica que ajuda no treino, mas não abdica do instinto só possível pelo contacto direto com o atleta: «A frequência cardíaca dos testes não dizem se um jogador está cansado, mas se falarmos com ele transmitem todas as sensações. Se são boas, então fazemos mais testes». O comentário fez-me lembrar Fernando Santos, que esta semana em Lisboa também deu um bom exemplo ao falar numa conferência de médicos sobre morte súbita no desporto.

Ancelotti fale em espanhol, mas quando se zanga tem de apelar ao coração e sai-lhe tudo em italiano, o que não ajuda à compreensão, mesmo num balneário poliglota. Mas o treinador responde com um sorriso e aceita comentar como é o dia-a-dia da equipa, de Bale a Cristiano, de Jesé a Casillas. Até de Mourinho. Chega à Cidade Desportiva de Valdebebas à 9:30 e regressa a casa cerca das 19:00. Começa por reunir-se com o corpo técnico e desenha o treino do dia. O ritmo da semana é diversificado, consoante o ritmo dos jogos.

Carlo diz que a maior pressão que sente não é dos jornalistas ou dos adeptos, mas dos jogadores, nomeadamente dos que não jogam. Poucos entram no seu escritório e quando o fazem normalmente significa problemas. «Sou um treinador tranquilo, tipo Del Bosque, Mourinho», graceja, acrescentando: «Gosto da relação ao mesmo nível, nem acima nem abaixo». Foi jogador e isso explica muito do seu comportamento.

Tem o seu estilo e não esconde que pode errar. «Prefiro morrer com as minhas ideias que com outras. Está claro que não existe apenas uma fórmula para ganhar», admitiu, acrescentando mais um pormenor delicioso sobre as diferenças nos estágios:

«Antigamente as concentrações serviam para fomentar relações no plantel, para o grupo. Não havia Facebook, não habia twitter, não havia playstation e eram ocasiões onde podiamos estar todos juntos. Mas agora, com tanta comunicação, só nos relacionamos durante as refeições, mas se é para isso mais vale que cada um coma em sua casa». Assim acontece no Real Madrid: «Juntamente com os capitães tomámos a decisão de nos concentrarmos no dia antes de jogamos à tarde, mas se o jogo é à noite só quero ver os jogadores de manhã».

No final de uma hora e meia de conversa, em que só por uma vez olhou para o relógio, perguntou aos jornalistas como era a relação com a assessoria de imprensa e até se havia algum adepto do Atlético. Riu-se uma última vez e foi-se embora, porque já estava na hora do jogo do Milan.

Seria assim tão difícil Jorge Jesus, Paulo Fonseca ou Leonardo Jardim fazerem isto? Meus senhores, não tenham medo de falar com os jornalistas.

«Um domingo qualquer» é uma crónica quinzenal do jornalista Filipe Caetano