O português Francisco Neto comandou a seleção de futebol de Goa (Índia) nos Jogos da Lusofonia e garantiu a medalha de ouro para um dos poucos - o único? - estados indianos que continua a preferir o desporto-rei. Na final, um triunfo por 3-2 frente a Moçambique permitiu a festa dos locais.

A Maisfutebol Total encontrou o treinador português no Aeroporto de Dabolim, à espera de um voo para Mumbai. Faltavam 40 minutos para o embarque. Tempo suficiente para a entrevista, a conversa através do IPad de Francisco Neto.

O jovem treinador (32 anos) de Mortágua não esconde o tremendo orgulho pelo feito histórico, enquanto prepara o seu regresso ao cargo de coordenador do Gabinete Técnico da Associação de Futebol de Viseu.

«Depois do que aconteceu, já não queriam que eu regressasse», começa por dizer Francisco Neto, entre sorrisos. «Há alguma especulação em redor de um possível regresso mas nada de concreto. Vou voltar à AF Viseu, onde me sinto muito bem, e só um projeto bem estruturado me faria sair de lá».

Goa surgiu no horizonte em meados de 2013, por intermédio de um professor da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. Francisco Neto aceitou o desafio: preparar os goenses para o torneio de futebol dos Jogos da Lusofonia, inicialmente agendados para novembro.

«No início foi difícil. Cheguei em agosto, na altura das monções, estava sozinho e as condições iniciais não foram as melhores. No primeiro treino tinha apenas 6 bolas disponíveis, não tinha apoios médicos e alguns jogadores não foram libertados pelos seus clubes. Por outro lado, já pairava a incerteza sobre a realização dos jogos em novembro devido ao atraso nas obras de alguma infraestruturas. Para além do choque cultural enorme, claro», recorda.

Após um longo processo, entre avanços e recuos, os Jogos da Lusofonia foram realizados neste mês de janeiro. Francisco Neto teve mais tempo para preparar a equipa. «Quando regressei a Goa, em dezembro, já sabia o que ia encontrar e tinha noção dos pontos fortes e fracos do futebol local. Fui alterando comportamentos para ir ao encontro do que pretendia.»



O treinador português reuniu um grupo que encheu os goeses de orgulho. «Apesar de sermos a seleção de Goa (Índia), só tínhamos um jogador de outro estado. E mesmo esse joga num clube de Goa. Isso não aconteceu nas outras modalidades, já que houve poucos goeses a participar.»

«Por isso mesmo, durante os quatro jogos do torneio lotámos a capacidade dos estádios. Depois da final, cerca de cinco mil pessoas ficaram na rua a fazer a festa, havendo até confrontos com a polícia», explica.

Francisco Neto colheu os frutos do seu trabalho. «Incidi sobre a intensidade e a capacidade de concentração. Os jogadores são evoluídos tecnicamente, estão adaptados ao clima mas têm falta de experiência competitiva. Aqui os campeonatos iniciam nos sub-14, depois há sub-16 e sub-18. Não há sub-15 ou sub-17. E os campeonatos duram no máximo três meses. Quando chegam aos sub-21, temos menos jogos oficiais que um sub-15 em Portugal», frisa.

O atraso na realização dos Jogos da Lusofonia impediu a participação de seleções como Portugal, Brasil ou Cabo Verde. Moçambique seria a favorita à conquista do troféu, mas Goa sorriu no final.

A seleção orientada por Francisco Neto venceu Moçambique no primeiro jogo da fase de grupos (2-1). A vingança foi servida no segundo jogo, com o adversário a triunfar pela margem mínima (1-0). Após um sorteio para determinar o líder do grupo, Goa enfrentou Macau nas meias-finais e superou o obstáculo: 2-0.

No jogo decisivo, nova vitória frente a Moçambique (3-2) e a festa. «As chaves foram a união, o espírito de entreajuda, a seriedade dos jogadores e a vontade de aprender mais todos os dias. Um exemplo: depois da firnal, os jogadores podiam ir para casa ou ficar a dormir mais uma noite no hotel: decidiram ficar todos juntos!»

O português agradeceu o apoio de amigos e família. «Não só no torneio, mas também nos meses em que estive sozinho em Goa. Ninguém tem a noção do quanto isso foi importante». De qualquer forma, o maior elogio vai para os seus jogadores. «Eles marcaram-me. Há ali histórias de vida incríveis, de jogadores que cresceram em habitações sem casa de banho, que passaram fome, mas que amam o futebol. São uns sobreviventes e deram-me uma lição de vida.»

«Devo salientar que ninguém esperava isto inicialmente. Na última edição dos Jogos da Lusofonia, Goa sofreu 18 golos e marcou apenas dois. Sendo a seleção anfitriã, ninguém queria passar pelo mesmo. O nosso objetivo era diminuir a diferença entre uma seleção estadual (só temos jogadores de Goa) e as seleções nacionais, para além de disfrutar o momento. Felizmente, tudo correu bem», remata.



A segunda melhor nota do curso e o sonho

Francisco Neto, atualmente com 32 anos, aproximou-se do futebol aos seis. O seu pai treinava na altura o Mortágua FC: «Como não tinha idade para jogar, ia apanhando umas bolas durante os treinos.»

«Comecei entretanto a jogar no clube mas, com a ida dos meus pais para Viseu, ingressei no Clube de Futebol Os Repesenses. O futebol sempre foi a minha paixão e, com a entrada na Faculdade, surgiu o convite da AF Viseu para colaborar nas seleções distritais. Trabalhei pelo meio em alguns clubes e em 2007 aceitei a proposta de coordenar o Gabinete Técnico da AF Viseu, onde estou até hoje», resume.

Em 2013, o jovem técnico destacou-se no Curso de Treinadores de IV Nível. Francisco Neto tirou a segunda melhor nota do curso (16,6), apenas superado por Filipe Almeida, preparador-físico da equipa técnica de Vítor Pereira. Logo atrás ficaram nomes como Paulo Fonseca, Nuno Espírito Santo ou Sérgio Conceição.

«Tirar uma nota melhor que colegas que estão na Liga não significa que sou melhor ou pior. Foi uma classificação sem grande diferença entre todos», salienta o treinador, reconhecendo que gostaria de trabalhar, a médio prazo, no escalão principal. «É o sonho de qualquer treinador jovem e ambicioso, mas estou tranquilo, gosto do que faço e onde estou, por isso não tenho pressa.»

O curso realizado em Quiaios, entre 20 de maio e 21 de junho, permitiu o contato e a troca de experiências com vários treinadores consagrados. Momentos que Francisco Neto não esquece. «No Paulo Fonseca, destaco a imensa qualidade, a humildade e a capacidade de trabalho. De resto, todos os treinadores foram excecionais, havia espírito de entreajuda e camaradagem e conseguia-se falar de futebol desde o pequeno-almoço até ao jantar», concluiu o técnico, em entrevista à Maisfutebol Total.

Nessa altura, o técnico estaria longe de imaginar que levaria Goa ao ouro nos Jogos da Lusofonia.