Até perto das 20.15 desse 4 de novembro de 1992, nada de especial aconteceu no estádio De Meer, em Amesterdão. O jogo era um discreto Ajax-V. Guimarães, da 2ª eliminatória da Taça UEFA. Depois da vitória clara por 3-0, em Portugal, os holandeses, detentores do troféu, geriam a segunda mão em velocidade de cruzeiro. O médio Alflen tinha acabado de responder ao golo de N'Dinga, fixando o 2-1 no marcador quando as bancadas irromperam num aplauso estrondoso. Na linha lateral, um médio entroncado, de pele escura, recebia as últimas indicações de Louis Van Gaal. Passados alguns segundos, escrevia-se história: com 16 anos e 217 dias, Clarence Seedorf entrava em campo, tornando-se o mais jovem oriundo da academia do Ajax a alinhar num jogo europeu.

Passaram mais de 21 anos, mas Quim Machado lembra-se «como se fosse ontem» desse momento e da «grande ovação» que o acompanhou. O atual treinador do Desp. Chaves, na II Liga, era defesa nesse Vitória e, tal como os companheiros de equipa, estava rendido à superioridade dos holandeses: «Foi das últimas grandes equipas do Ajax. Tinha Van der Sar, Jonk, Blind, De Boer, Overmars, Petterson, Davids», enumera sem esforço. «E também tinha Bergkamp, com quem troquei de camisola no fim do jogo», acrescenta.

Os jogadores do Vitória aperceberam-se de que aquele miúdo estava a ser alvo de um tratamento especial. Mas nos 30 minutos em que esteve em campo, o jovem médio não brilhou especialmente: «Não posso dizer que se tenha destacado, mas a equipa deles estava à vontade, com a eliminatória ganha. Por isso até conseguimos dominar um pouco mais esse jogo», conta.

O miúdo não lhe saiu da memória: à medida que a carreira de Seedorf evoluiu, tornando-o num dos melhores médios do futebol europeu, Quim Machado ia comentando as novas etapas no círculo de amigos, com autoridade de quem lhe apadrinhou a estreia. «De todos esses nomes, segui especialmente dois: o Bergkamp, por causa da camisola, e o Seedorf, por que era tão novo, só um miúdo de 16 anos».

A recordação surge a pedido do Maisfutebol nesta terça-feira, dia em que, no Rio de Janeiro, Clarence Seedorf anunciou formalmente o adeus aos relvados. Num português exemplar, fruto da ligação de 20 anos com a brasileira Luviana, com quem tem quatro filhos, o médio virou a página sobre uma carreira ilustre, recheada de títulos e recordes. E explicou que só o fez para aceitar um pedido irrecusável: treinar o Milan, clube onde jogou dez temporadas, as suas últimas no futebol europeu.



No topo da Europa aos 19 anos

Nascido em Paramaribo, no Suriname, Clarence viajou para a Holanda com a família, em 1978, apenas com dois anos. Aos oito, passou a integrar a academia do Ajax, numa altura em que o departamento de formação do clube holandês produzia talentos atrás de talentos. E desde essa noite de novembro de 1992, o seu nome ficou ligado, como poucos, à história do futebol europeu das duas últimas décadas.

Único jogador da história a ganhar Ligas dos Campeões por três clubes diferentes (Ajax, Real Madrid e Milan, este por duas vezes), Seedorf foi precoce em tudo: em 1995, com apenas 19 anos, já era uma referência no meio-campo do Ajax que conquistou o título de campeão europeu diante do Milan. Nesse verão, aproveitando as mudanças do acórdão Bosman, optou por não renovar e rumou ao primeiro de três clubes italianos, a Sampdoria, de Eriksson. Só lá ficou um ano: apesar da companhia ilustre de nomes como Mancini, Mihajlovic e Karembeu, a equipa ficou-se pelo meio da tabela, e Seedorf, um veterano de apenas 20 anos, não hesitou em procurar um projeto mais ambicioso, em Madrid.

No Bernabéu, ao lado de Roberto Carlos, Raúl, Hierro e Mijatovic, sagrou-se campeão de Espanha no primeiro ano, e ganhou a Liga dos Campeões no segundo, em 1998. Simbolicamente, a conquista, diante da Juventus, aconteceu em Amesterdão, no Arena – estádio onde não chegou a jogar pelo Ajax, visto que só foi inaugurado depois da sua partida. Data dessa mágica temporada 1997/98 aquele que é, provavelmente, o golo mais célebre da sua carreira, marcado num dérbi com o At. Madrid, a mais de 40 metros da baliza:



O regresso a Itália

Após uma terceira temporada menos feliz, a chegada de Guus Hiddink a Madrid marcou nova viragem na carreira de Seedorf, que em janeiro de 2000, insatisfeito com o estatuto de suplente, decidiu regressar à série A, perdendo a oportunidade de nessa primavera conquistar a terceira Liga dos Campeões, a segunda ganha pelos merengues em três anos. No Inter, durante três épocas, recuperou protagonismo e influência.

Cruzou-se com nomes de peso como os portugueses Paulo Sousa e Sérgio Conceição, Zanetti, Baggio, Pirlo, Vieri e, principalmente, com Ronaldo «fenómeno». Apesar da constelação, o Inter não conquistou qualquer título. E o ponto mais alto da passagem de Seedorf pelos nerazzurri terá sido este bis num clássico com a Juventus, que mais uma vez sublinhou a excelência dos seus remates de longe:



Um segundo fôlego em Milanello

Com apenas 26 anos, Seedorf parecia ter estagnado a carreira. A falta de troféus, a que se juntava a ausência da Holanda no Mundial da Coreia, obrigavam-no a encontrar um novo rumo. Foi o que conseguiu com a transferência para o Milan, onde chegou no verão de 2002, um ano depois de Rui Costa. Com o português, mas também com Shevchenko, Maldini, Pirlo e Gattuso, a empatia foi quase imediata. Inteligente, comunicativo, fluente em cinco idiomas, Seedorf tornou-se rapidamente uma das referência dos «rossoneri», no balneário e em campo.

Ficou por lá dez anos, completando o hat-trick de Ligas dos Campeões em 2003, e juntando-lhe um quarto título em 2007, sempre com Carlo Ancelotti como líder. Quando saiu, em 2012, tinha juntado aos títulos europeus mais dois «scudetti», uma Taça, duas Supertaças europeias e um Mundial de Clubes. Mais importante do que isso, somou 432 jogos oficiais pelo clube, superando o histórico Nils Liedholm para se tornar o estrangeiro com mais presenças em campo em toda a história do Milan. Como bónus, deixou um rasto de inteligência e personalidade forte, decisivo para que o telefone voltasse a tocar, um ano e meio depois da partida.

Os últimos 18 meses, passou-os no Botafogo, o clube de Luviana, aproveitando a casa que comprara para a família há vários anos no Rio de Janeiro. Era para lá que se esgueirava a cada período de férias, desta vez ficou mais tempo do que o habitual. Aos 36 anos, ainda foi suficientemente influente para fintar o rótulo de reformado, tendo contributo decisivo para o título de campeão carioca conquistado pelo Botafogo. O último troféu relevante, numa carreira com mais de duas dezenas, ao mais alto nível.

A nova etapa fá-lo abraçar um Milan em crise, vítima do emagrecimento na folha salarial. Mas o rasto de profissionalismo e inteligência dá-lhe um crédito que pode ser importante para os primeiros tempos, numa altura em que, com a equipa no 11º lugar – mas ainda em prova na Champions - as expetativas estão mais por baixo do que nunca.

Quim Machado, que apadrinhou a estreia do jogador, dá agora as boas vindas ao futuro colega; que começa a carreira num berço de ouro: «Se analisarmos o que se passa lá fora, e em especial na Holanda, os ex-internacionais entram na carreira de treinador pela porta grande. Por cá – e não falo por mim, porque nunca atingi estatuto de internacional – é preciso começar por baixo. Eles têm mais portas abertas. Se têm valor ou não, precisam de demonstrá-lo, como todos. mas têm mais portas abertas. No caso do Seedorf, ele também muito fez por isso, pela carreira que teve nos relvados», conclui. Há 21 anos, quem diria que o «puto» chegava aqui?

A carreira de Seedorf em números

899 jogos oficiais por clubes (130 golos)
160 jogos nas competições europeias (15 golos)
87 jogos na seleção holandesa (11 golos), entre 1994 e 2008
Presenças no Mundial de 1998 e nos Europeus de 1996, 2000 e 2004

Títulos:
Quatro Taças dos Campeões Europeus (1995, 1998, 2003 e 2007)
Dois títulos de campeão da Holanda (1994 e 1995)
Uma Taça da Holanda (1993)
Duas Supertaças da Holanda (1993 e 1994)
Um título de campeão de Espanha (1997)
Uma Supertaça de Espanha (1997)
Uma Taça Intercontinental (1998)
Dois títulos de campeão italiano (2004 e 2011)
Uma Taça de Itália (2003)
Duas Supertaças de Itália (2004 e 2011)
Duas Supertaças Europeias (2003 e 2007)
Um Mundial de Clubes (2007)
Um título de campeão carioca (2013)