Discreto, direto ao assunto e cheio de classe. Podíamos usar estas palavras para descrever apenas o tweet com que Xabi Alonso anunciou, nesta quinta-feira, o adeus à carreira como jogador, no final da temporada.

Mas estas são, também, palavras que servem na perfeição para definir o trajeto de um dos médios centro mais influentes do século XXI. No mesmo ano em que Gerrard e Lampard também comunicaram o fim de carreiras brilhantes, enquanto os trintões Xavi, Pirlo e Kaká vão distribuindo os últimos pingos de classe no Qatar e nos Estados Unidos, o adeus anunciado do médio do Bayern Munique confirma a ideia de fim de ciclo: a primeira geração de médios de elite dos anos 2000 está de saída e deixa saudades.

O filho de peixe nadou melhor que o pai

De raízes bascas, filho de um antigo internacional espanhol dos anos 80 – Miguel Periko Alonso, campeão pela Real Sociedad e pelo Barcelona, que representou a seleção «roja» num Mundial 82 de má memória – Xabi Alonso seguiu as pisadas do pai, formando-se nos escalões da Real Sociedad, tal como o irmão Mikel. Chegou à primeira equipa uma semana depois de completar 18 anos, em dezembro de 1999. Ficaria cinco temporadas, com uma curta passagem pelo Eibar, por empréstimo, e foi decisivo no regresso da Real Sociedad à Liga dos Campeões, em 2003.

O prémio de melhor jogador espanhol, nesse mesmo ano, abre-lhe as portas da fama e da seleção. Depois de uma abordagem falhada do Real Madrid e de um Euro 2004 de sabor amargo – onde a Espanha é eliminada na primeira fase, perdendo com Portugal em Alvalade – ruma a Liverpool por cerca de 13 milhões de euros. Com Xabi, Morientes e Luis Garcia – e mais tarde com Reina, Arbeloa e Fernando Torres - Rafael Benitez dá início à era espanhola em Anfield.

A inteligência de Xabi Alonso, no campo e fora dele, a capacidade de passe à distância e alguns golos espectaculares, bem como o bom entendimento com os líderes históricos como Gerrard e Carragher, fazem do jovem basco um ídolo instantâneo para os adeptos dos reds. Alguns pormenores clássicos, como o facto de jogar com o número 14, de Johann Cruijff, e não abdicar das clássicas botas pretas, ajudam a consolidar-lhe uma imagem de culto.

E esse estatuto torna-se definitivo quando, no final da primeira temporada, tem contributo decisivo na mais épica final de Liga dos Campeões de que há memória: em Istambul, diante do todo-poderoso Milan, o Liverpool transforma um 0-3 ao intervalo num 3-3 final, com Xabi a marcar o terceiro, de recarga a um penalti seu. O desempate sorri aos reds, que voltam ao topo da Europa, 21 anos depois. Dois anos mais tarde, em Atenas, os protagonistas repetem-se, em nova final, mas desta vez Xabi Alonso está no lado dos perdedores.

Os títulos que lhe fogem em Anfield encontra-os ao serviço da seleção: com Luis Aragonés ao comando, sagra-se campeão europeu em 2008, embora com utilização intermitente na fase final. Dois anos mais tarde, com Vicente del Bosque no comando, já é titular indiscutível na roja que conquista o Mundial da África do Sul. Na final, decidida por um golo de Iniesta no prolongamento, a violenta patada que lhe é aplicada pelo holandês De Jong, perante a complacência do inglês Howard Webb, torna-se um símbolo da brutalidade nos relvados.

M, de Madrid, Mourinho… e Munique

Por essa altura, já Xabi tinha trocado Anfield pelo Bernabéu: em 2009, completa com Cristiano Ronaldo, Kaká e Benzema o poker de contratações milionárias de Florentino Pérez, num investimento superior a 250 milhões de euros. No ano seguinte, é Mourinho quem chega ao Real, e Xabi Alonso, com quem se tinha cruzado por diversas vezes no futebol inglês, torna-se um dos seus homens de confiança, no relvado e fora dele.

É o auge da rivalidade entre Real Madrid e Barcelona, e o contraste de estilos entre Mourinho e Guardiola é bem ilustrado pelo futebol linear e de longo alcance, com que Xabi Alonso alimenta na perfeição a velocidade de Ronaldo e Di María, e a circulação pausada e paciente com que Xavi, Iniesta e Messi constroem a máquina de vitórias que mora na Catalunha.

Em especial no plano mediático a animosidade atinge níveis quase insustentáveis, mas tal como Xavi e Iniesta, do outro lado da barricada, Xabi, um dos generais do Real, tem a inteligência para separar as coisas: na seleção, a alquimia de estilos funciona de forma perfeita, levando em 2012 à conquista de uma inédita sanduíche de títulos consecutivos, com dois Europeus e um Mundial.

Nesse mesmo ano de 2012 conquista o primeiro título de campeão espanhol, mas a glória europeia continua a escapar aos merengues sob o comando de Mourinho. É já com Ancelotti no banco que em 2014 o Real conquista a coroa, em pleno estádio da Luz. Ausente da final, por acumulação de amarelos, Xabi Alonso torna-se um dos protagonistas dos festejos, saltando das bancadas para se juntar aos abraços após o golo de Sergio Ramos. A UEFA não perdoa e castiga-o com mais um jogo de suspensão, o que o leva a falhar a decisão da Supertaça. Com a classe do costume, não deixa de recriminar Michel Platini pelo castigo, na entrega das medalhas.

Aos 32 anos, parecia pronto a entrar na reta final da carreira, mas nesse mesmo verão, depois de um Mundial dececionante, onde encerrou um trajeto com 11 anos e 114 internacionalizações, aceita o desafio de Guardiola e responde à contratação de Toni Kroos, para o «seu» lugar, fazendo o caminho inverso, de Madrid para Munique. Mesmo tendo de trocar a camisola 14 pela 3, no Bayern volta a demonstrar toda a sua classe e inteligência, adaptando-se às ideias de Guardiola e à realidade exigente do futebol alemão.

Em Munique também se torna rapidamente um líder indiscutível. A fama de pensador e a inteligência das suas intervenções públicas permitem-lhe, até, brincar com a sua própria imagem em campanhas publicitárias como esta:

Não surpreende, por isso, que o anúncio da despedida, nesta quinta-feira, tenha provocado uma enxurrada de homenagens de atuais e antigos companheiros de equipa.

Homenagens um pouco prematuras, é verdade: pelo menos até maio, o «outro» 14 do futebol mundial, o homem dos passes longos, das botas negras e dos remates imprevisíveis vai continuar a abrilhantar os relvados alemães e europeus. E, caso venha a conquistar a Liga dos Campeões pelo Bayern, Xabi Alonso será apenas o segundo jogador na história do futebol a consegui-la por três clubes diferentes depois do holandês Seedorf (Ajax, Real e Milan). Um dado que de certeza não escapou a quem habituou os adeptos de todo o mundo a resolver problemas pensando por antecipação.

O adeus de Xabi acentua, também, um ponto de interrogação sobre o processo de renovação em curso no Bayern de Munique: poucas semanas depois de conhecido o adeus oficial de Lahm, e com Ribéry e Robben acima dos 33 anos, e só mais um ano de contrato pela frente, o próximo verão também poderá ficar na história do clube bávaro como o de uma página definitivamente virada. Com ou sem uma derradeira Champions como prémio para estes quatro mosqueteiros, é o que vamos perceber daqui até lá.

Currículo de Xabi Alonso

804 jogos oficiais (114 na seleção)

1 título de campeão mundial (2010)

2 títulos de campeão europeu (2008 e 2012)

2 Ligas dos Campeões (2005 e 2014)

2 Bundesliga (2015 e 2016)

1 Liga de Espanha (2012)

1 Taça da Alemanha (2016)

2 Taças do Rei (2011 e 2014)

1 Taça de Inglaterra (2006)

1 Supertaça da Alemanha (2016)

1 Supertaça de Espanha (2012)

1 Community Shield (2006)