As metáforas musicais têm má reputação no universo das crónicas de bola. E é fácil perceber porquê: a partir da 15ª referência a samba/tango/fado/flamenco a propósito de equipas brasileiras/argentinas/portuguesas/espanholas, as palavras e os sons perdem sentido e tudo começa a soar como música de elevador.

Mesmo assim, é quase irresistível pegar nas declarações de Jürgen Klopp e imaginar que nesta quarta, no Westfallenstadion, os Rammstein voltam a enfrentar a Filarmónica de Londres, depois da vitória por dois encores a um, há 15 dias.

Levando à letra a visão de Klopp, o choque de referências entre as duas equipas poderia traduzir-se em qualquer coisa como isto:



Mas, caricaturas à parte, não parece assim tão inconciliável gostar igualmente deste power chord metaleiro para Lewandowski:



e deste poema sinfónico concluído por Wilshere:



Tão inteligente quanto provocador, Klopp sabe-o. E sabe que não fala só do Arsenal, ou de Arsène Wenger, quando compara o andante moderato dos «gunners-bola-no-pé» ao metal pesado das transições do seu Dortmund. Ao traduzir numa metáfora metaleira o essencial do debate estético sobre futebol, Klopp aponta a um outro duelo: aquele que trava com o Bayern, de Guardiola, pai espiritual do tal Barcelona que o teria feito dedicar-se ao ténis, caso tivesse aparecido mais cedo.

A herança de Sarriá

Com 46 anos, Klopp era um adolescente de 15 na tarde de julho de 1982 em que a Itália, ao bater o Brasil no Sarriá, construiu o muro ideológico que, ainda hoje, divide os adeptos de futebol com memória. A julgar pelo adulto em que se tornou, o futuro treinador do Dortmund poderá ter visto, logo ali, o que hoje está à vista de qualquer observador sem preconceitos: que, nessa tarde, ganhou a melhor equipa, a que sabia exatamente o tipo de música adequado ao momento.

(se ainda não viu o jogo na íntegra, arranje 100 minutos e veja-o aqui. A sério que vale a pena)

A declaração de Klopp, propositadamente exagerada, relança o diálogo que faz do futebol um organismo em permanente evolução. Sendo indiscutível que a matriz de todas as orquestras, o Barcelona dos últimos cinco anos, é uma das mais admiráveis equipas de sempre, é profundamente abusivo transformar o tiki-taka numa receita de exportação universal (primeiro absurdo) e, pior ainda, detentor de uma superioridade moral sobre os outros estilos (segundo absurdo). Um dia, lembram as palavras de Klopp, a contra-revolução vai impor-se, o «heavy metal» será de novo a força dominante no futebol. E então, algures, um novo Guardiola iniciará outra revolução em andante moderato, só com uma bola, um conceito e uns miúdos.

Sejam seguidores de «heavy metal», de música clássica, ou de qualquer outra hipótese intermédia, os treinadores carismáticos têm isto em comum: fazem-nos acreditar nas suas ideias, mesmo quando a realidade as desmente. Por isso, imaginamos os melhores de todos a escolher à sorte onze adeptos das bancadas, para organizarem em campo uma equipa com som próprio. Essa seria a mais radical e política das opções, a devolução do futebol a quem lhe dá identidade e raízes. O equivalente com bola a este milagre do maestro italiano Riccardo Muti, numa noite de protesto na Ópera de Roma.



O ponto de Klopp (mentira, é o meu, mas talvez dito assim passe) é este: não há uma maneira certa de jogar. Há, sim, preferências e escolhas que, com sorte, espelham as nossas num dado momento. Com mais sorte ainda, se a identificação for profunda, essas escolhas fazem-nos sentir participantes do jogo, como o público-intérprete de Muti. Mas, depois, há golos, resultados e troféus, a lembrar-nos a humildade fundamental: ter razão, no futebol, é apenas uma questão de tempo e pontaria. Não perceber isto é não perceber nada de música.