1. A ideia não é propriamente original, mas tenho de começar por aqui: os nossos tempos são cruéis para a diversidade futebolística. Primeiro foi a Lei Bosman, logo a seguir veio a globalização, por fim apareceram as novas tecnologias a uniformizar estilos e costumes.

Jogadores, treinadores, até dirigentes, viajam num mercado sem fronteiras e com eles levam conceitos e tendências. O futebol europeu tornou-se enfim uma grande babilónia.

Por isso olha-se para o Bayern Munique e não se vê o futebol alemão, olha-se para o Barcelona e não se vê ali muita coisa que seja espanhola, olha-se para o Arsenal, para o Tottenham ou para o Manchester United e não há vestígios do futebol inglês.

Fica-se até, mas apenas em último caso, com saudades de Stuart Pearce.

De repente parece que só a Itália é fiel às suas raízes, na defesa intransigente do catennacio que protege contra todos os preconceitos.

A Inglaterra perde a urgência das bolas longas para o ataque, a Espanha troca a fúria de antigamente por um jogo carregado de paciência, a Alemanha enterra o conceito de dois extremos bem abertos, e sobretudo de dois pontas-de-lança altos e fortes no jogo aéreo.

As seleções perderam a raiz do estilo patriota e o respeito pela diferença.

No entanto, e era aqui que queria chegar desde o início, vale a pena notar que nos momentos mais difíceis, é a esse estilo patriota que as equipas nacionais regressam. Basta olhar para o Europeu e para dois ou três casos sintomáticos.

A Alemanha, por exemplo.

Entrou no primeiro jogo mal posicionada defensivamente, a ser constantemente ultrapassada pelo contra-ataque da Ucrânia. Por isso, e por cada ataque que construía, sofria imediatamente a seguir uma resposta que deixava a baliza de Neuer sob ameaça. Foi um período duro.

E o que fez a Alemanha? Sem ser capaz de se entender com o adversário, entregou a bola a Toni Kroos e esperou que o passe longo do médio fizesse o resto. Durante muito tempo a equipa foi apenas isso: bolas longas, variações, mudanças de velocidade.

Foi enfim a Alemanha de antigamente.

Na segunda parte tudo mudou, é verdade, a equipa refinou a transição defensiva, estabilizou dentro do próprio jogo e deu um recital de futebol técnico: houve muito mais Ozil do que Toni Kroos e com isso houve também mais bola de pé para pé.

Da mesma forma no segundo jogo entrou muito bem, com posse e passe, num futebol curto e muito belo. Mas as coisas mudaram na segunda parte, quando a Polónia assumiu alguma superioridade: nessa fase, Joachim Low reagiu com Mario Gomez e o jogo alemão tornou-se mais longe, direto, à procura do ponta de lança e a piscar o olho ao passado.

A Espanha, por outro lado, também não entrou forte frente à Rep. Checa: até Iniesta pegar efetivamente no jogo, a seleção espanhola andou vários minutos à deriva.

E nessa altura o que fez? Cruzamentos e mais cruzamentos, remates de fora da área, ataques rápidos, jogadas de insistência. Foi a altura em que houve muito Nolito, e pouco Iniesta ou David Silva: ora Nolito, já se sabe, é uma espécie de espanhol de antigamente.

Por isso, e para terminar, acho que podem ficar tranquilos os céticos da globalização: quando as coisas correm realmente mal, quando tudo o resto falha, as seleções vão ao fundo da alma procurar a matriz histórica que sempre as definiu.

Sinal que ainda têm memória, portanto.

2. Não é difícil imaginar que há uma discussão que nos próximos dias vai subir de tom: o debate em torno do aproveitamento do meio-campo do Sporting na seleção.

É uma conversa que já tem alguns meses e que assenta num argumento: em 2004 a seleção portuguesa só cresceu quando Scolari aproveitou o meio-campo do FC Porto.

Eu, contudo, recuso-me ir tão longe.

Basta-me olhar para este Europeu. Há duas seleções que, no final da primeira jornada, deixaram bem indiscutível a candidatura ao título: a Alemanha e a Itália. Foram as únicas, aliás, que venceram os respetivos jogos por mais de um golo de diferença.

Ora o que têm ambas em comum? Uma matriz clubística, sim.

A Alemanha tem a matriz do Bayern, transportada por Neuer, Boateng, Muller e Gotze, mais um pouco de Kroos (que ainda há dois anos fazia parte da equipa). A Itália, por outro lado, tem a matriz da Juvetus, transmitida por Buffon, Barzagli, Bonucci e Chiellini, curiosamente toda a defesa italiana, que na seleção desempenha o papel mais importante.

A isto podia ainda acrescentar a Espanha, que não abdica do padrão do Barcelona, passado por Piqué, Jordi Alba, Busquets, Iniesta e mais um pouco por Fabregas também.

A verdade, meus caros, é que as competições de seleções se tornaram lugares difíceis, onde as defesas constantemente levam a melhor sobre os ataques. Por isso há poucos golos, poucas oportunidades, poucos jogos que nos entusiasmem verdadeiramente.

Porquê? Porque falta aos jogadores nas seleções trabalho de casa, compreensão, prática de laboratório. Faltam-lhes recursos que só se adquirem com muito tempo de partilha.

Aproveitar o que já foi feito num clube é sinal de inteligência: se dúvidas houvesse, aí está este Europeu para o confirmar.

«Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui às sextas-feiras de quinze em quinze dias