Para quê preocupar com mulheres, trabalho ou futebol quem tem, numa bicicleta sem rodinhas, o desafio de uma vida para encarar.
Mas o imbróglio lá haveria de vir e, por isso, o Miguel atravessava um grave problema. Agradar a gregos e a troianos. Dizer que sim sem descartar o não. Dividir para reinar.
Afinal, o caso era bicudo. O Miguel era filho de pai portista e mãe benfiquista. O que já de si era duro. Pior ficou quando a namoradinha, também do Benfica, lhe deu o recado que trazia de casa: namorados do F.C. Porto, nunca! O Miguel foi encostado à parede.
Pressionado a escolher entre F.C. Porto e Benfica, sob ameaça de rompimento, remediou com classe: «Agora sou do Real Madrid!».
O Miguel, de seis anos, é do Real Madrid porque viu na televisão. Perguntei-lhe: e os teus amigos na escola, acham bem que sejas do Real Madrid? «Agora somos todos...»
História gira, pensará o leitor. Errado. Pense comigo.
Este é um caso. Só um. Não servirá para uma conclusão científica mas chega para o que eu quero: deixar o aviso.
O Miguel não sabe que o Real Madrid fica do lado de lá da fronteira. Vai aprender, um dia, que houve um senhor chamado D. Afonso Henriques que, montado num cavalo, decidiu andar à bulha para colocar uns marcos a separar este povo do povo do lado de lá. O do sotaque.
É certo que talvez o Real Madrid tenha sido uma moda passageira provocada por um patriotismo exacerbado e, em alguns casos, exagerado. Mas há-de aparecer outro. Há-de vir um Bayern de Munique, um Manchester United. Há-de haver uma criança do Barcelona, outra do Chelsea, se calhar uma do Mónaco, se lhe pagarem bem.
Enquanto isso, por cá, viram agulhas uns aos outros, preocupados com o fim, sem pensar no meio. Sem apurar o como, sem explicar o porquê. Sem mostrar que, acima de tudo, está o futebol. Sem preocupações em debater o jogo, o espetáculo. Sem perceber se está tudo bem.
Enquanto isso, o futebol sai da televisão do povo, entra nas elites. Os jogadores ficam ao longe, em redomas humanas, em centros de treino fechados ao estilo quartel general. Os treinadores discursam o costume, decalcam mensagens, acusam os mesmos.
Enquanto isso, as bancadas ficam vazias porque o frio aperta, porque a crise não ajuda, porque a equipa não joga, porque não vale a pena e isto é tudo feito e ganham sempre os mesmos e não era penalty que eu bem vi.
E é o helicóptero da polícia que sobrevoa o estádio em dia de Clássico a lembrar o clima de guerra e as claques, fardadas ou casuais, que assustam tanto como apoiam e a culpa que é do jornalista que disse que aquele vinha e afinal não veio.
O Miguel, e os amigos, já sentem que estão tão perto de uns como de outros. Esbatem os quilómetros de diferença, esquecem a forma diferente de falar, ignoram raízes e costumes.
Imagino que o Miguel, e os amigos, até acabem por mudar. Por voltar. E se não o fizerem, que interessa, são tão poucos. Mas significa muito.
O Miguel diz que é do Real Madrid. Os de cá, vão ficar a ver jogar?
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