28 de Junho de 2000: Portugal-França, 1-2

Quando faço uma lista com os meus defeitos - e repare que é preciso estar muito desocupado ou frustrado para o fazer - nunca lá coloco presunçoso. E por isso, entre outras coisas, nunca disse que tinha o melhor avô do mundo. Sabia que não tinha o pior e isso bastava-me.

Até porque havia algumas coisas que eu não gostava no meu avô. Não muitas, mas uma não me deixava dúvidas: ver futebol com ele. O meu avô era um adepto, digamos, especial. Pertencia a uma estirpe que julgo estar em vias de extinção: o adepto ranzinza.

Ver um jogo de futebol ao lado do meu avô era um teste aos meus limites. Que normalmente se esgotavam ao fim de dez minutos e meia dúzia de Estes gajos são uma vergonha. Para que não haja dúvidas ele falava dos jogadores da equipa que, supostamente, «apoiava».

Algumas vezes eu resistia heroicamente. Outras fechava-me no quarto à espera de um golo que me levasse de volta ao pé dele, agora de braços erguidos e a gritar. Confesso: ia lá para provocá-lo. Ele ria por dois segundos, se tanto, e depois voltava a fechar-se em copas. Não jogam nada. E eu calava-me.

Vi quase todos os jogos do Euro 2000 com o meu avô. O que me leva a concluir que no fundo eu gostava daquele jogo de gato e rato entre o meu otimismo (onde andas?) e aquele profetizar de desgraças que me chagava a paciência.

Para o meu avô a hora do jogo era sagrada. Na sala ou na cozinha, televisão ligada, olhos apontados, ouvidos atentos e boca a disparar. Começava com um Vão levar poucas e variava para um Eu já sabia ou o tal Não jogam nada, que era o mais perto que ficava de admitir que a coisa até tinha corrido bem.

E quando havia um golo? Gritos? Festejos? Apenas silêncio. Para o meu avô um golo da sua equipa era unicamente uma pausa para descansar a mente em busca de novos factos para criticar.

Por isso, quando o Figo furou a baliza do David Seaman, ele não teve reação. Quando o João Pinto mergulhou de cabeça para a história, ele ficou na mesma. Quando o Nuno Gomes deu a volta, ele nem se mexeu. Quase que posso jurar que o vi bocejar quando o Costinha marcou à Roménia o golo que deu o apuramento. E se o «hat-trick» do Sérgio Conceição à Alemanha lhe passou ao lado, não seria o «bis» do Nuno Gomes à Turquia a mudar alguma coisa.

Até que veio aquele jogo com a França. De novo lado a lado, eu e ele. A minha fé, as resmunguices dele. Eu acreditava que ia dar resultado. Ele dizia que não.

E quando o Nuno Gomes fez aquele golo, tão belo quanto improvável, saltei, obviamente, da cadeira. Olhei para o lado à espera de ver nele a cara de espanto do Barthez, quanto muito, mas, pela primeira e única vez na minha vida, vi o meu avô festejar um golo.

Sorriu, fechou o pulso direito e bateu com ele duas vezes na mesa. Talvez pareça pouco, mas acredito que tenha sido uma enorme descarga de adrenalina.

Nunca percebi se o fez porque acreditou, finalmente, que ia correr bem ou se pressentiu o fracasso e quis experimentar finalmente a sensação de festejar um golo. Ou se tinha alguma coisa contra franceses. Não sei...

A verdade é que depois o Henry empatou e o Abel Xavier resolveu contrariar todo o estudante universitário que grita Mão direita é penalty!. Com a esquerda também é. Portugal ficou por ali.

E eu estava, acima de tudo, confuso, ainda a pensar naquela reação. Desde aí já vi o Mourinho correr à volta do Olímpico de Sevilha, o Ronaldo dançar o «Ai se eu te pego» ou o Falcao imitar as piruetas do Tomas Brolin. Mas nada me pareceu tão arrebatador como aquilo. Portugal não conseguiu fazer história. Mas o meu avô fez.

«Cartão de Memória» é um espaço de opinião/recordação acerca dos mais míticos jogos do século XXI, o tempo de existência do Maisfutebol. A ordem dos jogos reflete apenas a vontade do autor. Pode sugerir-lhe outros momentos através do Twitter.