Efeméride é uma rubrica que pretende fazer uma viagem no tempo por episódios marcantes ou curiosos da história do desporto, tenham acontecido há muito ou pouco tempo. Para acompanhar com regularidade, no Maisfutebol.

2 de junho de 1994. Eram quase 4:00 da madrugada. À porta do bar El Índio, em Medellin, gritava-se «golo» cada vez que uma bala entrava no corpo de Andres Escobar, uma das estrelas da seleção colombiana. Foram doze balas, mais do que suficientes para que a vida do jogador terminasse naquele parque de estacionamento. Dez dias antes tinha marcado um autogolo que levou à eliminação da seleção Tricolor do Mundial dos EUA. Foi esse momento infeliz, em que colocou a bola na própria baliza, que gerou a discussão fatal.

Futebol, narcotráfico e violência

Andrés Escobar Saldarriaga nasceu a 13 de Março de 1967 em Medellin e ali viveu quase toda a vida. Formado nas escolas do Atlético Nacional, chegou à primeira equipa aos 19 anos e, aos 22, teve uma curta experiência no Young Boys, da Suíça, regressando seis meses depois ao clube de origem. Em 1989, capitaneado por Andres Escobar, e diretamente financiada pelo barão da droga Pablo Escobar, o Nacional de Medellin conquista em maio desse ano a primeira Taça Libertadores para o país, impondo-se na final aos paraguaios do Olímpia.



A carreira do jovem central ia de vento em popa, e o futebol na Colômbia também. O futebol profissional servia de fachada para operações de lavagem de dinheiro – quer através das receitas de bilheteira, quer de falsas declarações de transferências e de contratos fictícios –, e os salários mais altos começaram a atrair talento e condições de trabalho que rivalizavam com as das potências da América do Sul.

O futebol desenvolvia-se no país, e a Tricolor ganhava com isso. Com uma geração de grandes talentos, liderada por Carlos Valderrama, e com nomes carismáticos como Higuita ou Rincón, a seleção da Colômbia pôs fim a um jejum de três décadas longe dos grandes palcos para ter uma prestação digna no Mundial 90, onde chegou à segunda fase.

Mas este envolvimento do narcotráfico com o futebol tinha um preço muito alto. A violência que na altura assolava o país, com as guerras entre carteis, misturava-se com vitórias e derrotas desportivas, mais ainda com o envolvimento nas apostas. Uma derrota significava muitas vezes a morte de alguém, fosse por causa de uma aposta perdida, por simpatia clubística, ou apenas para mostrar poder.

O autogolo fatal

A Colômbia apresentou-se no Mundial dos Estados Unidos com uma seleção cheia de fantásticos jogadores. Carlos Valderrama, Adolfo Valencia, Freddy Rincón, Faustino Asprilla, Andres Escobar, e, curiosamente, o guarda-redes Faryd Mondragón que, há poucos dias, se tornou, com 43 anos, o mais velho jogador de sempre em Mundiais.

Fez uma campanha irrepreensível na fase de apuramento, com quatro vitórias e dois empates, em seis jogos, marcando 13 golos e sofrendo apenas dois, terminando como primeira classificada do Grupo A.

Mas, na fase final, uma derrota por 3-1 com a Roménia complicou as contas dos Cafeteros, que precisavam depois de vencer os EUA, no segundo encontro, no Rose Bowl, em Pasadena. Aos 35 minutos, Escobar tenta interceptar um cruzamento de John Harkes, e acaba por introduzir a bola na própria baliza, abrindo o marcador para os norte-americanos. Earnie Stewart fez o segundo e Adolfo Valencia ainda reduziu aos 89 minutos, mas já não houve tempo para mais. A derrota, por 2-1, ditou a eliminação da Colômbia da prova.



40 homicídios numa noite

Com a morte de Pablo Escobar, em dezembro de 1993, esperava-se que (alguma) calma regressasse a Medellin, mas não foi assim. Só naquela noite de 2 de julho de 1994, 40 pessoas foram assassinadas – Andres Escobar e outras 39 –, um número normal para a cidade que continuava a ferro e fogo.

Humberto Muñoz Castro, segurança de um traficante de droga, confessou ter sido o autor dos disparos, e alegou que o motivo foi uma discussão causada por divergências de opinião sobre futebol. Foi julgado pelo crime e punido com 43 anos de prisão. Mais tarde, a pena foi reduzida para 26 anos. Entre protestos e lamentos, o homicida viria a ser libertado em 2005, apenas 11 anos após a morte de Andres.

Não faltam teorias para explicar a morte do jogador, mas nenhuma delas foi comprovada pela Justiça colombiana durante o processo. Sabe-se apenas que a discussão começou com o tema do autogolo e que, a cada bala disparada, o homicida gritou «golo».

A tese mais defendida é a que fala sobre um assassinato premeditado, a mando daqueles que perderam dinheiro em apostas com o resultado do jogo entre a Colômbia e os EUA. Santiago Escobar, irmão de Andres, acredita nesta teoria. «Foi por causa das apostas e por causa do autogolo. As pessoas que ordenaram a sua morte não tinham escrúpulos e provocaram o assassinato. As pessoas que o fizeram pensavam que eram donas do mundo e o pior é que ficaram impunes. O homem que disparou apanhou 11 anos e os cabecilhas ficaram livres», lamenta.

Freddy Rincón, companheiro de Escobar na seleção, recorda que era perigoso estar em Medellin após o fracasso no Mundial. «A cidade passava por uma situação difícil. Naquela época era complicado estar lá à vontade», lembra o ex-jogador.

Após o crime, outros jogadores da seleção tiveram que receber proteção policial, com receio de mais homicídios. «É uma coisa que nunca iremos esquecer. Não tenho lembranças nada boas daquele momento, porque causou a todos uma indignação muito grande. Ninguém esperava que algo daquele género pudesse acontecer», revela Rincón, que estava em Medellin na altura e foi um dos primeiros a receber a notícia da morte de Escobar.

«A expectativa para o Mundial era alta. E a deceção foi igualmente grande. O que concluo de tudo isso é que nós não estávamos prontos para ter o favoritismo num Mundial, nem os jogadores, nem o nosso povo».

O povo, esse, saiu à rua para se despedir de Andres. No funeral estiveram presentes mais de 100 mil pessoas. E ainda agora, 20 anos depois, a Colômbia não esquece o central.

«Andrés Escobar sempre nos nossos corações. Nunca esqueceremos a tua bondade, humildade e a tua luta. Sinto a tua falta, irmão. Sinto a tua falta», escreveu Carlos Valderrama.

«Hoje lembro-me desse grande, enorme ser humano e jogador que foi Andres Escobar. Grandes lembranças e grande orgulho de ter convivido com essa pessoa e esse cavalheiro. Obrigado, Deus, por tê-lo feito colombiano e meu amigo», escreveu Rincon.

«Hoje lembramos um grande amigo e uma excelente pessoa. Faz 20 anos que este episódio absurdo aconteceu e que nos marcou...», escreveu Victor Hugo Aristizábal.

Passaram 20 anos. Medellin já não tem 40 homicídios por noite, aliás, a taxa de criminalidade baixou 80% desde o início dos anos 90. As estrelas agora são outras, e brilham alto.  Falcao, James Rodriguez,  Pablo Armero, Jackson Martínez, Juan Cuadrado... são os novos ídolos de um país que pouco tem a ver com o que viu morrer Andres Escobar.