André Martins cumpre a segunda temporada no Légia de Varsóvia, depois de 14 anos de ligação ao Sporting e de dois anos no Olympiakos. Nesta segunda parte da conversa, André redige uma verdadeira carta de amor aos pais.

Os sacrifícios, a entrega, a capacidade de aceitar a saída de casa de um menino com apenas 12 anos. Uma viagem emocionante à infância do internacional português.

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Nasceu em Argoncilhe, perto de Santa Maria da Feira. Que memórias tem da sua infância?
Ótimas memórias. Sou o que sou hoje porque vim de uma família e de uma vila muito humildes. Nunca deram nada aos meus pais, trabalharam toda a vida. Cresci nesse ambiente. Recordo-me de ouvir o Bruno Fernandes dizer que estão a roubar a paixão ao futebol e eu tenho saudades desses dias em que o futebol era mesmo só paixão para mim. Adoro o que faço, mas o futebol está a ficar podre. O backstage é insuportável. Estamos a perder a essência do jogo. Quando era pequeno só queríamos jogar por amor, sem pensar em negócios. Foram tempos maravilhosos.

Como se chamam os seus pais e o que faziam quando o André era pequeno?
O meu pai chama-se Vítor e sempre trabalhou na Corticeira Amorim. Trabalhou lá mais de 20 anos. A minha mãe chama-se Maria Beatriz, trabalhou numa fábrica de sapatos e depois mudou-se para uma fábrica de móveis. O meu pai trabalhava por turnos, levava-me à escola e depois era a minha mãe que me ia buscar quando saía do emprego. A minha mãe só deixou de trabalhar quando teve um problema oncológico e o meu pai trabalha ainda hoje.

O problema de saúde da sua mãe está controlado?
Sim, ela teve esse problema há quase dez anos, mas o cancro é imprevisível e a minha mãe tem de ser muito acompanhada. O histórico familiar dela é mau, pois já faleceram irmãs dela com o mesmo problema. Por isso é que todo o cuidado é pouco.

Gostava de fazer coleções de cromos e ter posters de ídolos na parede do quarto?
O meu pai diz que eu pedia bolas, sempre bolas. Fiz algumas cadernetas, mas sobretudo queria ter bolas de futebol. Não tinha um grande ídolo. Aliás, o meu pai era e é o meu ídolo. Ele jogava futsal, era esquerdino e eu lembro-me de lhe dizer ‘pai, quem me dera trocar o meu pé direito pelo teu esquerdo’. Jogava muito, era incrível, mas nunca deu valor ao talento que tinha. Sempre foi muito fácil ter regras e segui-las, porque os meus pais incutiram-me tudo isso: ir dormir cedo, comer bem, ser aplicado no trabalho. Sem falar no meu pai, posso dizer que o meu primeiro ídolo foi o João Moutinho e depois o Iniesta e o Xavi. Parei aí.

Lembra-se da primeira vez que foi a um estádio ver um jogo?
Seguia um pouco o Feirense, cheguei a ir ver os seniores. Mas a minha primeira memória concreta já é de Alvalade. Tinha 12 anos e fui de autocarro com os meus colegas ver um jogo da equipa principal do Sporting.

Falemos sobre isso. Tinha só 12 anos quando saiu de casa dos seus pais para jogar no Sporting.   
O meu pai já sabia há algum tempo, mas não me disse nada. Não queria que perdesse o brilho no olhar quando falava sobre futebol e não me queria pressionar com nada. Uma vez, depois de um jogo pelo Feirense, fomos a um restaurante e ele perguntou-me se eu gostaria de jogar num clube grande. Eu disse que sim. Na altura o meu pai recebeu também propostas do FC Porto e do Boavista, muito mais perto de casa, mas eu nem pensei na distância (risos). Disse-lhe logo que queria ir para Lisboa e jogar no Sporting. O meu pai explicou-me que ia ficar longe da família, mas eu estava muito decidido e escolhi o Sporting. Mas nos primeiros três meses na academia de Alcochete chorei todos os dias. Passei muito mal, não comia. A minha mãe conta sempre uma história que prova como eu reagi mal.

Vamos ouvi-la.
No primeiro dia, os meus pais deixaram-me em Alcochete e voltaram para Argoncilhe. Estava há meia-hora sem eles e telefonei-lhes a perguntar se já tinham chegado a casa (risos). A minha mãe disse que não, claro. ‘Saímos daí há 30 minutos’. Foi uma desculpa para falar logo com eles.

Pensou em desistir logo do Sporting?
O senhor Aurélio Pereira percebeu tudo e veio falar comigo. ‘Vamos fazer assim: tu suportas estes meses até ao Natal e se não aguentares mais podes ficar em casa dos teus pais. Se não fores agora jogador do Sporting, podes ser mais tarde. Jogas lá no Feirense. Até podes treinar lá e vires só ao fim-de-semana’. Depois foi tudo uma questão de tempo, de habituação. Conheci bons amigos, fui para a escola e esqueci-me dos problemas. Mas nunca poderei pagar aos meus pais tudo o que fizeram por mim (André comove-se).


Os meus pais iam ter comigo a Alcochete em todos os fins-de-semana [600 quilómetros no total]. Todos.  Os rios de dinheiro que gastaram em combustível para estar só três ou quatro horas comigo. Lembro-me de o meu pai dizer que o salário da minha mãe era só para isso, para pagar as viagens de Argoncilhe a Alcochete. Gasóleo, algum dinheiro para mim, almoços… os meus pais serão sempre os meus ídolos. Eles levantavam-se às seis da manhã, metiam o meu irmão de um ano a dormir no banco de trás e faziam a Estrada Nacional 1 para não terem de pagar a portagem na auto-estrada. Demoravam mais de quatro horas para baixo, mais quatro para cima (André pára uns segundos). O amor é assim, ainda me comove um bocadinho falar disto. Eu tinha colegas que viviam a uma hora e meia de Lisboa e não tinham lá os pais. Os meus pais não falhavam um fim-de-semana. E o meu irmão era um bebé. Faço o que posso por eles, não os deixo passar por dificuldades. Faz-me feliz saber que os posso ajudar de alguma forma. Foram tempos que me marcaram. Temos uma relação incrível.

Como era o dia-a-dia de um menino de 12 anos na Academia?
No início, difícil. Passava muito tempo no quarto. Quando as coisas normalizaram, tinha escola durante o dia e treinava sempre ao fim da tarde. Isso mantinha-me mais ocupado e permitia-me atenuar a saudade. Mas ainda hoje, com 30 anos, tenho o meu pai a dizer-me isto: ‘Se algum dia te sentires sozinho e precisares de alguma coisa, eu largo o trabalho e apanho o primeiro avião’. Eles vivem para mim e para o meu irmão. O meu pai é uma pessoa espetacular. Eu e a minha mãe até lhe damos na cabeça por ser demasiado bom, demasiado humilde. Foi ele que me ensinou tudo.

O Aurélio Pereira tinha o papel de tutor na ausência dos seus pais?
Sim, exatamente. Ainda mantemos uma boa ligação. Aliás, continua a chamar-me ‘Menino de Borracha’ (risos). Ele dizia sempre: ‘eh pá, és tão pequenino, eles batem em ti e tu nem te aleijas, nem cais, pareces de borracha’. Hoje nas mensagens que trocamos chama-me sempre assim. Foi um segundo pai para mim, ajudou-me muito na Academia.

Quem foram os seus grandes amigos nesses dias da Academia?
O Diogo Viana, agora do Sp. Braga. Foi meu colega de quarto até ir para o FC Porto. O Diogo Amado (Al Gharafa, Qatar), o Diogo Rosado (Concordia, Roménia), o Cédric (Arsenal), o Luisinho (Ac. Viseu). Aliás, o Luisinho foi o meu primeiro colega de quarto. Tinha uma qualidade técnica incrível, uns pés fantásticos. As amizades são umas das coisas boas no futebol, mas desengane-se quem acha que os futebolistas têm muitos amigos. Quando isto acabar, sei que poucos deles vão ficar comigo. Sou uma pessoa sociável e gosto de ajudar os outros.