André Martins cumpre a segunda temporada no Légia de Varsóvia, depois de 14 anos de ligação ao Sporting e de dois anos no Olympiakos. O médio foi forçado a ficar na Polónia durante os piores dias da pandemia e faz uma reflexão importante sobre a sua condição como futebolista profissional.

Inteligente, lúcido e comunicador de excelência, André diz-se feliz no atual clube e acredita ser possível disputar a Liga dos Campeões na próxima época.

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Como é que está a situação em Varsóvia? Já foi possível voltar a treinar?
Voltámos aos treinos na segunda-feira, dia 4 de maio. Começámos a trabalhar em grupos de seis jogadores e no sábado fizemos o primeiro treino com todo o plantel junto. Já fomos testados duas vezes à Covid-19 e no passado fim-de-semana viemos todos para uma vila que fica a uma hora de Varsóvia. Temos um hotel só para nós e o campo é mesmo ao lado. O primeiro jogo é no dia 26 de maio.

Como é a atmosfera atual na Polónia? As pessoas estão preocupadas?Um bocadinho, é normal. Eles aplicaram medidas rígidas numa fase inicial e o plano correu bem. Estamos a falar de um país com 40 milhões de habitantes e só 18 mil infetados. Morreram menos de 1000 pessoas até agora. Tomaram as medidas certas e sinto que as coisas estão controladas. O aeroporto só abre no dia 27 de maio e há ainda muitos negócios fechados. Estou bem, voltei a treinar e estamos concentrados para ganhar o campeonato e a taça.

O André esteve em Portugal durante o estado de emergência?
Não, já não consegui. Quando o campeonato acabou, tivemos de esperar uns dias porque não sabíamos o que ia acontecer. Quando tivemos autorização para viajar, o aeroporto já estava fechado. Mesmo que viajasse a tempo, teria de ficar 14 dias em quarentena em Portugal e depois mais 14 quando voltasse à Polónia. Um treinador adjunto nosso foi ao país dele e só conseguiu juntar-se a nós agora.

Esteve sempre em Varsóvia?
Sim, quase dois meses sozinho. Sem ninguém. Ainda bem que existe tecnologia (risos). Podia ter pedido aos meus pais para virem, mas a minha pessoa é uma pessoa de risco, pois teve cancro da mama há uns anos. Não quis arriscar. O meu irmão tem 18 anos e também não o quis obrigar a isto e ser egoísta. Estamos todos bem na minha família e isso é que conta.

Nesses quase dois meses conseguia ir à rua de vez em quando, apanhar ar?
Durante duas semanas era proibido sair. Só podíamos fazer compras ou ir à farmácia. Essa foi a fase mais difícil. Treinava em casa mas não era a mesma coisa. Por muito que digam, não é. Depois podia sair, mas sempre com máscara. Comecei a correr e a treinar ao ar livre. Todas as pessoas andam de máscara na rua, é mesmo obrigatório. Quem não usar pode ser multado. Já conseguimos ver mais pessoas, mas na fase inicial as ruas estavam desertas. A população foi bastante cumpridora. Estamos a falar de uma cidade onde se vive bem. Em Atenas, por exemplo, percebia que havia muito sem-abrigo. Aqui não. Claro que a cidade é grande e nunca andei pelos subúrbios, posso estar a ser injusto. No que vejo, percebo que há qualidade de vida.

Está a gostar da experiência no Légia?
Sinceramente, estou a adorar. As coisas têm-me corrido muito bem. Não vou ser hipócrita e dizer que é só por estar bem em Varsóvia. Não. Tenho um papel importante na equipa, as pessoas do clube gostam de mim, renovei contrato há uns meses [até 2022] e a parte desportiva tem-me corrido lindamente. A cidade é enorme, muito bonita, vive-se bem e não é cara. Atenas é muito mais cara, é uma coisa estapafúrdia. A Polónia não aderiu ao Euro e tem uma moeda mais fraca, o que acaba por ser bom para mim. Há sítios espetaculares, museus lindos, parques enormes e restaurantes bons.

Como define a liga polaca?
Dos campeonatos onde joguei é o mais competitivo. Não digo com isto que é o que tem mais qualidade, porque não é. Felizmente joguei já nas ligas portuguesa e grega. Mas é o mais competitivo, muito físico e que me obriga a estar em todos os jogos no máximo. Não há um jogo em que consiga relaxar, ter mais bola, gerir. Somos sempre obrigados a correr e a lutar muito. São jogadores muito físicos e atropelam-te. Compensam alguma menor qualidade com a vertente física. Cresci muito nesse aspeto, comecei a não ter tanto receio de entrar em duelos físicos e em meter o pé. Eu adoro estudar, não só o futebol. Podemos aprender com todos os desportos. Se eu for mais rápido a pensar do que o adversário, em 80 ou 90 por cento das jogadas vou conseguir fugir e evitar o choque.   

O Légia chegou a ter vários portugueses. Agora tem o André e o Luís Rocha.
Sim, o Salvador Agra rescindiu o contrato há pouco tempo, o Cafú foi para o Olympiakos e só estou com o Luís. O Luquinhas, um brasileiro que jogou no Aves, também é uma pessoa próxima. É bom ter estes amigos. 

Aproveitou esta interrupção para refletir um pouco sobre a sua vida enquanto futebolista?Muito, sem dúvida. Na maior parte das vezes não temos noção do que se passa ao nosso lado. Somos abençoados e a vida que temos é incrível, mas vivemos numa bolha. Fazemos o que gostamos, duas ou três horas por dia, independentemente do trabalho invisível. O que é isso? Descansar muito em casa, ter uma boa alimentação, deitar cedo, enfim, alguns sacrifícios. Mas há muitas mais vantagens do que desvantagens em ser futebolista profissional. Esquecemo-nos um bocadinho do que nos rodeia, embora isso suceda mais a quem não teve de crescer numa família humilde. Eu cresci numa vila modesta, os meus pais tiveram sempre de trabalhar para terem o que têm, nunca lhes deram nada, sempre foram muito trabalhadores. Cresci com essa educação e lutei muito pelos meus sonhos. Talvez isso me dê uma noção diferente das coisas, mas não é fácil. Estamos tão concentrados no treino, no jogo… é difícil conseguir abstrair-me e pensar noutras coisas. No meio de tanta confusão, foi bom poder refletir e perceber que somos uma coisinha muito pequenina. Um simples vírus deixou o mundo aos trambolhões. Temos de estar mais unidos, valorizar mais o tempo com a família. Como temos disponibilidade financeira, queremos viajar, passear e se calhar metemos de parte pessoas que nos ajudaram a crescer. Acho que estes meses serviram para parar e pensar naqueles que são injustamente esquecidos por nós.

Já foi campeão na Grécia e este ano pode ser na Polónia. É isso o mais importante numa carreira?
Não posso mentir, não gosto de mentir. Não vou estar aqui a dizer que o dinheiro não é importante, pois é o que me ajudará a sustentar a família depois de acabar uma carreira que é curta. Dito isto, ganhar um campeonato é fantástico. É um sentimento único. Vejo imagens minhas antigas a celebrar e arrepio-me sempre. Só quem passa por isso, que vive as conquistas por dentro, é que percebe.

O Légia é um clube estável financeiramente?
Nesta fase passou por dificuldades, mas tem cumprido sempre. Este momento é difícil. Não há receitas, não há jogos na televisão, não há adeptos. Temos um plantel muito inteligente, que compreendeu bem a situação e que procurou desde o início ajudar o clube.

O clube reduziu os vossos salários neste período?
Sim, mas isso é perfeitamente normal. Há pessoas que têm outros trabalhos, com um salário mais pequeno, e que são obrigadas a estar em lay-off. Nós temos um salário muito maior e temos a obrigação de dar a mão ao clube e aos funcionários do clube que ganham bastante menos. É a nossa pequena ajuda.  

Adaptou-se bem aos costumes polacos, à gastronomia?
Temos restaurantes de todo o mundo em todo o lado. Se não gostas de comida italiano tens comida chinesa, se não gostas de comida chinesa tens mexicana ou sushi. Mas eu gosto muito de cozinhar. Sei aquilo que estou a comer e com 30 anos já tenho de me cuidar mais. A globalização está bem presente também em Varsóvia. Alguma da comida polaca agrada-me, mas não como diariamente. Eles têm sopas muito fortes e qualquer prato tem muitos condimentos.

Tem contrato na Polónia até 2022. É por aí que continuará?
Para já, sim. Gostaria de voltar ao meu país, mas sei como está o futebol e não é fácil. Não é uma obsessão. Estou muito feliz no Légia, as coisas estão a correr-me bem. Queremos ganhar o campeonato e sonhamos com a Liga dos Campeões. Infelizmente temos de entrar logo nas pré-eliminatórias e não é fácil chegar à fase de grupos. Mas, primeiro, temos é de ser campeões.